O Santuário de Nossa Senhora do Cabo já
foi um dos maiores locais de peregrinação do país, palco de festas magníficas
com teatro, ópera e touradas. Décadas de abandono trouxeram a decadência. Agora
há um filme que tenta resgatá-lo de anos de impasse político.
ALEXANDRA PRADO COELHO
21 de Setembro de 2014, 0:00
Mas,
mesmo “fora de todo o caminho”, atraiu os homens, que sentiram ali, de
diferentes formas, a presença do sagrado. Os acidentes naturais, geográficos e
geológicos foram sempre, diz ainda Heitor Pato, locais onde “residiam e se
manifestavam divindades ou forças transcendentes de que nem sempre se conhecia
o nome, embora não se duvidasse do seu poder: como disse o rei Evandro quando
conduziu Eneias à rocha Tarpeia e ao Capitólio, aqui habitam deuses, mas não
sabemos que deuses são…”.
Por
aqui passaram dinossauros, devotos muçulmanos, aqui nasceram mitos, apareceram
imagens misteriosas, os homens pasmaram perante pegadas sem explicação. Houve
quem acreditasse que aqui ficava uma das portas da Atlântida. Vieram crentes
seguindo Nossa Senhora e com as próprias mãos ergueram uma igreja, vieram
depois reis e cantores de ópera, fizeram-se procissões riquíssimas, houve luxo
e fausto e festa — até tudo cair numa desolação de fazer dó, como se os homens
tivessem decidido esquecer o cabo para sempre. Ainda aqui viveram retornados
das ex-colónias, mas com o tempo o património foi caindo. Depois todos se foram
embora, e o cabo Espichel parecia finalmente mergulhado no silêncio.
Mas, a
pouco e pouco, os homens voltaram. Como se não pudessem evitar. Vieram em
procissões, e vieram em motos (há um encontro anual de motards). Atraídos pelo
santuário e pelos braços agora emparedados dos antigos albergues para
peregrinos, pelas ruínas da Casa da Ópera, pela pequena capela junto ao mar.
Voltaram, enfeitiçados, a um cabo “fora de todo o caminho”.
Vieram
pela natureza — a visível, no vento, no mar, na terra, e no céu, e também
aquela que não é imediatamente visível, a vegetação em alguns casos única, os
segredos escondidos nas grutas de difícil acesso, a imensa vida no fundo do
mar, onde os peixes nadam entre restos de navios afundados. E pelas muitas
histórias que o cabo guarda.
O
fotógrafo Carlos Sargedas apaixonou-se pelo cabo Espichel há muitos anos,
quando foi viver para Sesimbra. Primeiro chegou por terra, depois quis vê-lo a
partir do ar. Durante muitos anos fotografou-o de todos os ângulos. E cada vez
se conformava menos com o destino a que parecia condenado. Os últimos quatro
anos, Carlos passou-os a filmar pendurado em rochas, de fato de mergulhador no
fundo do mar, entrando em sítios onde nunca tinha imaginado, falando com toda a
gente que lhe pudesse contar mais uma história.
DANIEL ROCHA
O
filme Cabo Espichel — Em Terras de Um Mundo Perdido,
com música composta por Miguel Valadares, vai ser apresentado no dia 24 em
Sesimbra, e será distribuído por instituições que possam ajudar a divulgá-lo
publicamente, juntamente com um livro reunindo dezenas de depoimentos de
especialistas.
Para
contar esta história, Sargedas reuniu desde geólogos como Jacques Rey da
Universidade de Toulouse, a directores de museus como Silvana Bessone, dos
Coches, ou Miguel Magalhães Ramalho, do Museu Geológico, biólogos como Fernando
Catarino ou António Teixeira, arqueólogos como Luís Ferreira, historiadores,
padres, espeleólogos, investigadores, arquitectos. Comprou à BBC imagens de
dinossauros a andar na terra há milhões de anos, como andaram no cabo Espichel,
reconstituiu uma batalha naval em 3D e arranjou actores que ajudaram a
relembrar diferentes momentos da história.
“O que
eu queria era mostrar às pessoas aquilo que elas não conhecem”, conta, numa
pausa do trabalho de tratamento de som do filme, no MVStudios, em Lisboa. “A
minha ideia era, se vamos mergulhar, então vamos mergulhar o mais fundo
possível.” O objectivo, conta o fotógrafo que é também o fundador da Arrábida
Film Comission (organizadora do festival Finisterra e que tem como missão
divulgar internacionalmente a região como cenário ideal para filmagens), é ter
um filme que mostre o que acredita ser o extraordinário potencial do cabo para
grandes produções internacionais de cinema (já aqui foram feitas algumas) e
para outros projectos.
As
filmagens foram uma aventura. “Quando começámos a mergulhar, estive uma hora
para conseguir meter a cabeça debaixo de água. E quando entrei numa gruta
pensei: ‘Vou morrer aqui.’ Cheguei a ficar entalado pelo externo, 70 metros
abaixo da terra, na escuridão. Entrei em pânico, mas depois consegui ir
empurrando um bocadinho de cada vez, com a ponta dos pés… Mas em nenhum outro
sítio eu teria estas emoções todas. Há coisas que já ninguém me consegue
tirar.”
Meteu-se
nisto porque acredita que pode ajudar o cabo Espichel e porque sentiu que não
podia ficar de braços cruzados a assistir à degradação daquele espaço. A
aventura, na realidade, começou antes do filme, em 2010, quando se lançou a
organizar as comemorações dos 600 anos do Santuário do Cabo Espichel (se
contarmos 1410 como a data em que terá sido encontrada a figura da Senhora do
Cabo).
“Na
altura perguntei à câmara o que ia fazer. A câmara disse que não tinha
dinheiro. Achei aquilo tão nada que decidi fazer uma proposta. Desafiei uma
série de fotógrafos profissionais e amadores a fazer exposições de fotografia,
desde a subaquática à histórica. Enquanto as pessoas só virem a degradação e
não olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”, explica.
“Então, em oito meses, organizei 16 conferências, uma a cada 15 dias. As
pessoas achavam que eu estava louco, que ninguém vinha à noite ao cabo, mas
ainda me lembro, em Setembro, uma noite, chovia torrencialmente, e aquilo
encheu.”
Mas a
grande loucura foi o final. Carlos queria encerrar com estrondo e pensou num
concerto. “Pensei ‘vamos ter um palcozinho, convidar umas bandas e fazer alguma
coisa’. Perguntei no Facebook quem alinhava e apareceu-me uma banda, depois
outra — em 15 dias, tinha 16 bandas, a últimas das quais foram os UHF. E então
digo: ‘Eh pá, o que é que vou fazer?’ Não tinha um cêntimo, não sabia organizar
um concerto.”
Um
amigo arranjou-lhe uns andaimes, o técnico da câmara desenhou o palco, os UHF
avisaram que mesmo de borla tinham de ter condições técnicas para tocar, a
polícia avisou que eram precisas licenças, a ASAE falou-lhe nas casas de banho
— e a cada dia o cenário parecia mais assustador. Apesar disso, Carlos fez
cartazes e anunciou a data: 11 de Setembro, para contrariar tudo de mau que
estava associado a esse dia.
Pediu
ajuda aos milhares de amigos no Facebook. “Apareceram cinco. A certa altura,
eram cinco da manhã, na véspera do concerto, eu estava em cima do palco, com um
vento terrível, a 12 metros de altura, a tentar pôr uma lona e entrei em
hipotermia.” Valeu-lhe um amigo da Azóia que ouvira dizer “que estava um maluco
no cabo Espichel e resolveu vir ver”, trouxe material de espeleologia e ajudou.
“Fizemos um concerto memorável, juntámos quatro mil pessoas. Não fez vento, não
havia uma brisa. A partir daí, as pessoas acreditaram.” Carlos chorava
perdidamente, os UHF davam entrevistas a dizer que era preciso salvar o cabo,
os políticos faziam promessas. O concerto “foi um momento mágico”.
Não é
de estranhar: a dimensão mágica está presente desde sempre no cabo Espichel.
Heitor Pato conta no seu livro que há até lendas que dizem que no dia do
nascimento de Jesus foram registados estranhos fenómenos solares sobre a
Península Ibérica e em particular sobre o cabo. Fala-se, em livros antigos,
também da presença de tritões (deuses marinhos) e de sereias — que, segundo
Pato, seriam na realidade lobos-marinhos.
BRUNO SIMÕES CASTANHEIRA
Quanto
aos dinossauros, não restam dúvidas de que uma ou mais manadas passaram por ali
há uns 150 milhões de anos. As pegadas, identificadas nos anos de 1970, ficaram
marcadas no que era então o fundo mole de uma zona de pântanos, entretanto
transformado em rocha que, fracturada, hoje pode ser vista quase na vertical,
em placas sobrepostas.
As
rochas do cabo guardam também outras marcas, mais pequenas, que os homens não
sabiam como interpretar, e daí terá nascido a lenda da Pedra da Mua, segundo a
qual a Senhora do Cabo teria subido a arriba transportada por uma mula que
deixara na rocha as marcas das patas.
Mas o
nome Mua, ou Mu, liga-se também, nas teses do investigador Manuel Gandra, à
lendária ilha-continente da Atlântida referida por Platão e desaparecida no
oceano Atlântico cerca de 10 mil anos antes de Cristo e que seria igualmente
associada ao nome Mu.
Ao
longo dos tempos, foram encontrados nas grutas da região sinais de cultos
vários — entre as muitas descobertas, inclui-se a de uma tábua de madeira com
uma inscrição do Corão em árabe. Heitor Pato admite como provável que tenha
havido nas proximidades um santuário islâmico e considera “legítimo supor-se já
nessa época [da presença muçulmana em Portugal] a organização de peregrinações
religiosas à finisterra sagrada da Arrábida”.
É
possível que precisamente por causa do domínio muçulmano, os cristãos
escondessem imagens sagradas. Mas, no caso da imagem da Senhora do Cabo, “quase
tudo é mito ou fonte de dúvida”, segundo Heitor Pato. A lenda mais comum é a
que conta que um velho de Alcabideche e uma velha da Caparica (unindo as duas
margens do Tejo) sonharam com o aparecimento da Virgem no cabo e para aí se
dirigiram, encontrando a imagem da Senhora em cima de um rochedo, o que levou depois
à edificação nesse local, à beira dos penhascos, da pequena Ermida da Memória,
onde a história dos dois velhos é contada em azulejos.
Costuma-se
localizar a descoberta da imagem no ano de 1410 (há muitas teorias e todas
impossíveis de comprovar), mas só mais tarde, já no século XVI, foi construída
a igreja, de costas para o mar, da qual hoje nada resta. A actual igreja, da
autoria do arquitecto régio João Antunes, foi mandada edificar em 1701 por D.
Pedro II. O culto foi crescendo e as romarias foram-se tornando cada vez
maiores e foram reforçadas pela ideia de que a Virgem garantia a protecção
contra a peste e outras epidemias.
Veio
de seguida o “esplendor de Setecentos”, com a imagem transportada em carros
triunfais, espectáculos de teatro, fogo-de-artifício, corridas de touros,
óperas compostas para a ocasião (daí a Casa da Ópera, situada atrás da ala
norte da hospedaria) e a presença dos reis e da corte — D. José chegou a
oferecer à Senhora “duas coroas de ouro cravejadas de diamantes e um ramo de jasmins
e, em brilhantes, esmeraldas e rubis”.
Voltemos
então à noite de 11 de Setembro de 2010, com Carlos Sargedas a chorar porque
conseguiu organizar um megaconcerto e porque parece que algo de bom vai
acontecer ao cabo Espichel. O que aconteceu depois disso? Nada.
O
fotógrafo tem a teoria de que a decadência do cabo coincidiu com o fim da
monarquia. “O culto aqui estava muito ligado à monarquia, e então aparece
Fátima, que vem ‘destronar’ a Senhora do Cabo. A partir daí houve um abandono
total.” Em 1995, a Confraria de Nossa Senhora do Cabo, proprietária do
santuário, fez um acordo com o Estado para a recuperação do edificado
(classificado como imóvel de interesse público desde 1950): por doação, o
Ministério das Finanças ficou com a ala norte da hospedaria, com o objectivo de
a transformar em pousada, enquanto a igreja e a ala sul continuam a pertencer à
Confraria e os terrenos à Câmara de Sesimbra. O Estado comprometeu-se por seu
lado a fazer obras de recuperação do conjunto.
Continuando
as duas alas da hospedaria entaipadas e não tendo nenhum projecto de
aproveitamento turístico ou outro surgido no local, o que Carlos Sargedas
pergunta é porque é que o Estado não devolve a ala norte, dado que a separação
das duas alas não permite nenhum projecto com viabilidade. Recebido por todos
os grupos parlamentares, Carlos conseguiu apenas que os Verdes dessem algum
seguimento ao caso, com perguntas ao Ministério das Finanças, que remeteu o
caso para a Secretaria de Estado da Cultura, que alegou já terem sido feitas
obras, nomeadamente na igreja, mas sublinhou que o santuário “não integra a
lista de monumentos afecta à Direcção-Geral do Património Cultural, não sendo
atribuição nem responsabilidade deste serviço assegurar a gestão e valorização
deste conjunto ou executar as obras e intervenções de que necessite”.
A
Câmara de Sesimbra, em resposta por email à Revista 2, fala numa “imensa teia
burocrática” que tem impedido que o problema se resolva e acusa o Estado de
nunca ter concretizado o compromisso que assumiu, situação que, diz, “é hoje um
dos maiores entraves à recuperação do monumento”.
A
autarquia “começou por desempenhar um papel de mediador entre as partes para
tentar encontrar uma solução pela via institucional, mas uma vez que já se
verificou que dificilmente o Estado avançará para a recuperação, tem-se
empenhado em tomar posse da ala norte para, em colaboração com a Confraria,
detentora da ala sul, avançar para a recuperação do espaço, com recurso à
iniciativa privada ou por intermédio de fundos comunitários como tem acontecido
com outro património do concelho”.
Embora
não tenha conhecimento de momento de algum investidor interessado, a câmara
argumenta que é precisamente para poder iniciar esses contactos que tem tentado
tomar posse da ala norte, mas uma proposta na qual “solicita poderes para
negociar com eventuais investidores”, feita em 2010 à Direcção-Geral do Tesouro
e das Finanças (DGTF), “nunca obteve resposta”.
Como
proprietária do terreno, vai em breve, com fundos do Proder, iniciar a
recuperação da Mãe d’Água. Quanto ao resto, ainda no início deste ano, em nova
reunião com a DGTF, “a autarquia voltou a insistir na necessidade de tomar
posse da ala norte, fazendo uma proposta de permutas de terrenos”, mas, apesar
de as propostas “terem sido bem recebidas pela tutela, “o facto é que se
passaram meses e não houve qualquer resposta”.
Impasse,
portanto. Carlos continua a lutar contra a frustração de ver que nada acontece.
A sua grande aposta é o cinema. Fez o filme que esta semana vai apresentar (com
apoio do Proder, mas muito dinheiro seu investido) precisamente para mostrar ao
mundo como o cabo serve de cenário para todas as histórias possíveis, “dos
Piratas das Caraíbas ao Indiana Jones, passando pelo Parque Jurássico”. Diz que
os produtores que tem trazido a Portugal através da Arrábida Film Comission
ficam encantados e que o país tem uma luz única para cinema. Só lamenta que não
haja mais incentivos para atrair as grandes produções.
Desafiou,
entretanto, um escritor para fazer um argumento que pretende vender a
Hollywood, uma espécie de “Código da Vinci do cabo Espichel” e, “se tivesse
dinheiro, ia tentar convencer o Tom Hanks” a participar. “Temos tudo aqui,
batalhas navais, vikings, evasões francesas, túmulos, segredos, uma imagem de
origem desconhecida, pegadas de dinossauros. Agora, o cinema faz o resto.”
Carlos
Sargedas esteve enregelado em cima de um palco às cinco da manhã agarrado a uma
lona, quando ninguém acreditava que ia conseguir montar um espectáculo; esteve
entalado numa gruta a pensar que ia morrer; gastou o dinheiro que tinha e o que
não tinha para fazer um filme sobre o cabo — e promete continuar a filmá-lo
porque ficaram histórias por contar. Já venceu muitos medos. Não está a pensar
desistir. O cabo onde certamente “habitam deuses” enfeitiçou-o para sempre.
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