sexta-feira, 8 de novembro de 2019


Mãos ao ar, isto é uma assembleia-geral! (BESA)
07.02.2019




Álvaro Sobrinho conta tudo, numa entrevista explosiva que acompanha a investigação da VISÃO
 José Carlos Carvalho



Não tenhamos dúvidas: a versão que hoje trazemos a público, denunciada agora pela primeira vez em Portugal por Álvaro Sobrinho com detalhes e documentos inéditos, relata um golpe palaciano para espoliar um banco português em Angola. Pequeno detalhe: um banco de um grupo que faliu, que deixou mais de quatro mil pessoas sem as suas poupanças e no qual, todos nós, os portugueses, já metemos mais de 5 mil milhões de euros.


Numa fatídica manhã de Outubro de 2014, ainda José Eduardo dos Santos e a sua entourage estavam de plena força no poder, Portugal perdeu para Angola mais de três mil milhões de euros. Tudo aconteceu numa assembleia-geral do BES Angola (BESA) em Luanda, onde o BES, o accionista maioritário, com mais de 55% do capital, sem sequer estar representado, foi expulso pelos accionistas minoritários – várias figuras e entidades ligadas ao regime angolano, entre as quais o general Dino e Zandre Campos Finda, conhecido por ser testa de ferro dos homens do Presidente, Kopelipa e Manuel Vicente. A mesma reunião em que o Novo Banco, que três meses antes tinha sido constituído para ficar com os activos “bons” do banco que implodiu em Agosto de 2014, ficou sem 80% do capital que emprestara nos anos anteriores ao BESA. Morria assim o BES Angola, que alegadamente estava falido, e nascia o Banco Económico, que ainda hoje está a funcionar, aparentemente de boa saúde, com os mesmos accionistas e a Sonangol. Tudo isto, com o suporte – e alegado incentivo – da autoridade de supervisão angolana, o Banco Nacional de Angola, e todos os poderosos do regime.
Esta história, que nas páginas da VISÃO revelamos com detalhe depois de uma investigação de vários meses, tem contornos de policial, com pormenores rocambolescos como o facto de a representante do BES ter sido retida numa operação de trânsito que determinou que chegasse atrasada, já depois de tomada a decisão que excluiu o accionista maioritário. A assembleia-geral parece, à luz de qualquer lei de direito comercial, altamente ilegal. Não tenhamos dúvidas: a versão que hoje trazemos a público, denunciada agora pela primeira vez em Portugal por Álvaro Sobrinho com detalhes e documentos inéditos, relata um golpe palaciano para espoliar um banco português em Angola. Pequeno detalhe: um banco de um grupo que faliu, que deixou mais de quatro mil pessoas sem as suas poupanças e no qual, todos nós, os portugueses, já metemos mais de 5 mil milhões de euros.
Em causa está apenas isto: afinal, o BESA pode não ter falido, como sempre se disse, mas tudo terá sido orquestrado de forma a afastar os portugueses e a não pagar uma dívida. Só que os dados da falência do BESA e as respectivas imparidades que explicam o seu suposto mau estado nunca foram conhecidos sequer pelo Banco de Portugal.
Sobrinho fala em “assalto aos portugueses”, Salgado, confrontado com factos e detalhes que desconhecia, fala ironicamente, claro está, em “presente a Angola” oferecido pelo “Banco de Portugal e pelas instituições financeiras que resultaram da resolução”, ou seja, o Novo Banco e o BES. Neste ponto ambos concordam, mas depois é ver cada um a atirar as culpas ao seu regulador: Salgado, como tem sido o seu discurso habitual à entidade de supervisão nacional; Sobrinho defendendo-se das acusações de ter mal gerido o banco, apontando o dedo ao anterior regime, que controlava tudo a bel-prazer. E porque fala ele então agora? Porque com o novo Presidente angolano, João Lourenço, o regime mudou e já pode denunciar os abusos de poder que antes tinha de aceitar.
Mas o que mais salta à vista nesta história é, de facto, a passividade nacional. A verdade é que ninguém contestou a decisão tomada em Luanda, naquela assembleia-geral: nem o governo de Passos Coelho, nem o Banco de Portugal, nem o Novo Banco. Apenas a comissão liquidatária do BES “mau” tem vindo a contestar e a impugnar judicialmente em Angola este processo, sem grande esperança de alguma vez vir a ser ressarcida
Há muitas dúvidas e perguntas para responder nesta história, nomeadamente se a garantia soberana irrevogável de 5,7 mil milhões de dólares (cerca de 4,2 mil milhões de euros, à data), que o Estado angolano deu ao BESA e revogada depois unilateralmente pelo Banco Nacional de Angola com as primeiras notícias da resolução do BES, poderia ter efectivamente salvado o banco da falência, como alega Ricardo Salgado. Falhou o Banco de Portugal ao não ter confrontado Angola? Nunca saberemos ao certo. Mas o que queríamos saber, por exemplo, é o conteúdo de uma investigação do Boston Consulting Group que terá apontado para falhas graves na actuação do governador Carlos Costa e que o Banco de Portugal insiste em manter secreto (invocando que contém dados sigilosos), apesar dos pedidos do Parlamento, sem sucesso, para o conhecer. Talvez encontrássemos algumas surpresas (quiçá pouco surpreendentes), tal como aconteceu agora com a Caixa Geral de Depósitos...
(Editorial da VISÃO 1353 de 7 de Fevereiro)

sábado, 29 de setembro de 2018

"TANCOS- CADA VEZ MAIS BIZARRO"


Mariana Madrinha, Jornal i | Jornal Sol






Tancos: Cada vez mais bizarro
A novela de Tancos continua a ser escrita e o enredo é cada vez mais surpreendente, ao ponto de agora correrem duas investigações: uma sobre o desaparecimento das armas, outra sobre o aparecimento das mesmas.


"Quando tudo indicava que mais nenhuma bizarria poderia nascer adjacente ao caso do roubo das armas de Tancos, eis que, esta semana, foram detidas oito pessoas - quatro elementos da Polícia Judiciária Militar (entre os quais o diretor-geral, o coronel Luís Augusto Vieira), três elementos da GNR de Loulé (incluindo o comandante Lima Santos) e um civil - desta vez a propósito da recuperação do material de guerra que apareceu na Chamusca depois de, alegadamente, os investigadores terem recebido uma chamada anónima a apontar o paradeiro das armas. 
Será ainda ouvido mais um militar: o antigo porta-voz da PJM, major Vasco Brazão, que volta na próxima terça-feira da República Centro Africana e que segundo o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, «está desejoso de prestar declarações perante o juiz e esclarecer o equívoco o mais rápido possível». «Não houve a prática de nenhuns ilícitos da parte dele e das pessoas que ele comandou. Há um desfasamento entre instituições, mas nenhuma atividade criminosa», afirmou o advogado, na quinta-feira, à porta do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde os detidos foram interrogados.
A detenção dos militares ao abrigo da Operação Húbris [palavra grega que significa orgulho excessivo ou arrogância] causou perplexidade no Exército e veio trazer ainda mais ruído a um caso absolutamente atípico e que já teve de tudo. Foram exonerados e readmitidos comandantes, o Ministro da Defesa chegou a afirmar que poderia não ter havido roubo, a lista do material furtado apareceu num jornal espanhol, foi devolvido mais material do que tinha sido roubado e, pelo caminho, foi ficando patente uma guerra entre polícias: a PJM e Polícia Judiciária.
 Na prática, neste momento, correm duas investigações sobre o mesmo acontecimento: uma sobre o desaparecimento do material furtado, outra sobre o aparecimento do mesmo. Para perceber como chegámos até aqui, o SOL deixa-lhe uma cronologia com os momentos-chave deste caso inédito.
2017: 28 de junho 
A falta do material dos Paióis Nacionais de Tancos foi detectada a uma quarta-feira, dia 28 de junho do ano passado. Os militares que faziam a ronda depararam-se com as fechaduras de dois paiolins arrombadas. Segundo o relatório elaborado pelo Ministério da Defesa entregue em março deste ano no Parlamento, «o acontecimento é reportado à unidade geradora da força, tendo também dado informação ao Escalão Superior e contactada a Polícia Judiciária Militar». No dia seguinte, a 29 de junho, o Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), Rovisco Duarte, envia um comunicado às redações a dar conta do sucedido. «O Exército informa que foi detectada ontem ao final do dia a violação dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos, à qual se associa o arrombamento de dois paiolins. Verificou-se o desaparecimento de material de guerra, especificamente granadas de mão ofensivas e munições de calibre 9 milímetros», explicava a nota, que dava ainda conta de que PJM tinha tomado conta da ocorrência e iniciado as averiguações, «tendo tendo já sido informado o Ministério Público e a Polícia Judiciária». «Não vamos deixar nada por levantar», assegurou o Ministro da Defesa nesse dia, a partir de Bruxelas, naquela que foi a sua primeira intervenção relativa a este assunto.
1 de julho
O CEME anuncia a exoneração de cinco comandantes «com responsabilidade na segurança física» nos Paióis Nacionais de Tancos: Unidade de Apoio da Brigada de Reação Rápida, Regimento de Paraquedistas, Regimento de Infantaria nº 15, Regimento de Engenharia nº 1 e Unidade de Apoio Geral de Material do Exército. Rovisco Duarte sublinhou que a exoneração não estava relacionada com o desaparecimento do material e que tinha tomado esta decisão unicamente para se «criarem todas as garantias de que as averiguações em curso decorrerão de forma absolutamente isenta e transparente». Ainda neste dia, Pedro Passos Coelho demonstra-se surpreendido por não ter havido demissões na hierarquia militar - no dia anterior, a 30 de junho, os sociais-democratas e o CDS já tinham requerido a presença de Azeredo Lopes no Parlamento e o PCP exigira a retirada de conclusões de um caso que classificou como sendo de «extrema gravidade». Nesta altura, já a situação estava a ser acompanhada a par e passo pela NATO e a principal preocupação das autoridades era que o material caísse nas mãos de organizações criminosas internacionais ou de grupos terroristas.
2 de julho
O jornal El Español publica, na madrugada deste dia, uma lista alegadamente completa do material roubado - informação que o Governo português tinha segurado. De acordo com o documento, que até especifica quantidades, foram subtraídos, entre outros, 44 granadas foguete antitanque, 264 unidades de explosivo plástico PE4A - que têm um elevadíssimo potencial de destruição -, além de 1450 cartuchos de 9 mm e 90 granadas de mão ofensivas. Nessa noite, Rovisco Duarte dá uma entrevista à SIC onde revela que, dada a eficácia do roubo - os assaltantes «escolheram a dedo» os paiolins - teria havido «informação do interior». No dia seguinte, a 3 de julho, Assunção Cristas pede a demissão de Azeredo Lopes. No dia 4, Marcelo, juntamente com o ministro da Defesa, visita os Paióis e exige o apuramento «de alto a baixo, até ao fim, doa a quem doer». Nesse mesmo dia, a Procuradoria-Geral da República emite um comunicado sobre o caso, esclarecendo que o Ministério Público tinha iniciado «desde logo as investigações». O caso passou a ser investigado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), coadjuvado pela PJ e pela PJM. Segundo o MP, em cima da mesa estavam suspeitas da prática dos crimes de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo. 
6 de julho
Rovisco Duarte é ouvido pela Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, que se realizou à porta fechada, onde terá admitido que podem ter existido falhas de supervisão. No dia seguinte, o ministro é ouvido na mesma Comissão. Azeredo Lopes defende Rovisco Duarte e afirma que as falhas da segurança não se podem relacionar com qualquer desinvestimento no setor da Defesa. Apesar da confiança do ministro no CEME, começa a derrocada: a 8 de julho, o tenente-general Antunes Calçada, comandante do Pessoal, demite-se por «divergências inultrapassáveis» com Rovisco Duarte, noticia o Expresso. Ainda nesse dia, o general Faria Menezes, comandante operacional das Forças Terrestres, anunciou que iria sair pelas mesmas razões. «Com a exoneração dos cinco comandantes houve uma quebra do vínculo sagrado entre comandantes e subordinados», justificou.
11 de julho
O chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, general Pina Monteiro, depois de uma reunião em São Bento, afirmou aos jornalistas que «os lança-granadas foguetes que foram roubados não terão probabilidade de funcionar com eficácia, porque estavam selecionados para serem abatidos». Nesse mesmo dia, o Ministro da Defesa Nacional, bem como o CEMGFA e os Chefes dos Ramos das Forças Armadas reúnem-se com o primeiro-ministro, António Costa. A 25 de julho, Pina Monteiro, perante a comissão parlamentar de Defesa Nacional, esclareceu que o material não era, afinal, obsoleto e que as suas palavras se deveram ao facto de alguns materiais terem «características complexas» e não serem, por isso, «fáceis de usar». «Nunca fiz uma única referência a todo o material», sublinhou. 
17 de julho
O material guardado em Tancos é transferido para outras instalações militares, desistindo-se assim da ideia de reparar as vedações. Os cinco comandantes exonerados no início do processo são readmitidos.
10 de setembro
Logo no início de setembro, Marcelo mostra-se preocupado com a demora do «apuramento de factos e responsabilidades». A 10 de setembro, em entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, o ministro da Defesa admite que «pode não ter havido furto», invocando falta de quaisquer provas. «No limite, pode não ter havido furto nenhum», porque «não existe prova visual, nem testemunhal, nem confissão. Por absurdo podemos admitir que o material já não existisse e que tivesse sido anunciado... e isso não pode acontecer». Uma semana depois, num debate no Parlamento, o ministro anuncia medidas para reforçar a segurança dos paióis do Exército, mas recusa-se a responder a questões sobre «o que se passou em Tancos», alegando que a investigação criminal ainda estava em curso.
18 de Outubro
Quatro meses depois do assalto, na madrugada de 18 de outubro, o armamento furtado aparece na Chamusca, a cerca de 20 quilómetros do local de onde tinha sido subtraído. Durante a madrugada de terça para quarta-feira, o piquete de serviço PJM, em Lisboa recebeu uma chamada com indicações da localização do material. No local indicado, perto da ponte que liga a Chamusca à Golegã, num baldio perto de uma ribeira, a cerca de 20 km de Tancos, a PJM deparou-se com quase todo o material furtado - apenas faltavam as munições de 9mm - intacto. A devolução do material afastou uma das maiores preocupações: a tese de que as armas teriam sido furtadas para serem utilizadas em ataques terroristas. O material foi levado ainda antes da chegada da Polícia Judiciária ao local para os paióis de Santa Margarida, também ali perto, ficando à guarda do Exército, para, segundo informou a PJM em comunicado, «ser realizada a peritagem para identificação mais detalhada». António Costa aplaudiu «o trabalho desenvolvido pela Polícia Judiciária Militar (PJM) e pela Guarda Nacional Republicana (GNR), que permitiu recuperar» o material bélico. Nos dias seguintes, surgem notícias de que os assaltantes teriam devolvido material ‘a mais’. Segundo o relatório posteriormente divulgado, tudo não passou de um lapso: depois de um exercício, um sargento não atualizou a folha de registo de «quantidade de material», pelo que o Exército desconhecia que tinha sido furtado. O sargento foi alvo de um processo disciplinar e já cumpriu uma pena de repreensão.
30 de outubro
Os Paióis de Tancos são oficialmente desativados e o material é transferido, em duas fases, para Marco do Grilo, o Campo de Tiro de Alcochete e os Paióis do Campo Militar de Santa Margarida.
2018: 22 de março 
É entregue no Parlamento o já citado relatório elaborado pelo Ministério da Defesa. O Governo divulgou o documento, em que o ministério revela que, além de sistemas de vigilância, e de a rede de vedação dos Paióis estarem degradados, «nunca foi cumprido o número de efetivos originalmente determinado para a segurança da infraestrutura», escreveu a Sábado. 
31 de julho 
O general Rovisco Duarte foi ouvido novamente na Comissão da Defesa, a pedido do CDS. Também a procuradora-geral adjunta Helena Fazenda, Secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), e a embaixadora Graça Mora Gomes, Secretária-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SGSIRP), foram ouvidas em audições requeridas pelo PS. Segundo escreveu o Diário de Notícias, só neste dia é que o Parlamento teve conhecimento de que o material recuperado em outubro só tinha chegado à posse da PJ em junho deste ano.
25 de setembro 
Na manhã da passada terça-feira, 25 de setembro, o Ministério Público (MP) e a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ, fizeram buscas na sede da PJM - onde detiveram o diretor de órgão, o coronel Luís Vieira -, Porto, Algarve, Santarém e ainda noutros pontos da zona de Lisboa. Ao todo, foram detidas oito pessoas nesta operação: além Luís Vieira, outros três militares da PJM, três militares da GNR e um civil. A estes oito arguidos da designada Operação Húbris - que envolveu cinco magistrados do MP e cerca de cem investigadores da PJ - junta-se mais um suspeito: o antigo porta-voz da PJM, que, por estar em missão na República Centro Africana, só será ouvido na próxima quarta-feira. Em causa estão os crimes de de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, receptação, detenção de arma proibida e tráfico de armas. Na tese do MP, que o jornal i explicou esta quarta-feira, a PJM quis «estragar a investigação em curso, fazendo um acordo com o líder do grupo que roubou o material de guerra» para que o devolvesse. Os suspeitos foram levados para Estabelecimento Prisional Militar de Tomar e ouvidos no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa nos últimos dois dias.
28 de setembro 
Ao final da tarde, foram conhecidas as medidas de coação dos arguidos: o líder do grupo que terá roubado as armas e o diretor da PJM ficaram em prisão preventiva. Os restantes seis elementos saíram em liberdade, embora proibidos de exercer funções."



Comentário:
Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela.
- Albert Einstein. 
Logo, admite-se que há esperança para que a bizarra novela continue...

terça-feira, 12 de junho de 2018

Escândalo na Casa Pia desde 2002

Por:

ANA RITA FERREIRA - Público
25 Novembro de 2004

CRISTINA ESTEVES - RTP
24 Dezembro de 2015


Crologia do Processo da Casa Pia

23 Setembro de 2002 - A mãe de "Joel", um aluno da Casa Pia de Lisboa, apresenta uma queixa na Polícia Judiciária (PJ) contra o funcionário da instituição Carlos Silvino da Silva ("Bibi") por abusos sexuais contra o filho.

23 de Novembro de 2002 - O "Expresso" noticia que centenas de crianças do sexo masculino da Casa Pia de Lisboa poderão ter sido violadas nos últimos anos por um funcionário da instituição.

25 de Novembro de 2002 - O ministro da Segurança Social e Trabalho, Bagão Félix, demite o provedor da Casa Pia, Luís Rebelo.
Carlos Silvino é detido, ficando desde então em prisão preventiva.

26 de Novembro de 2002 - Os nomes do apresentador de televisão Carlos Cruz e do embaixador Jorge Ritto são avançados por alguns Órgãos de Comunicação Social, depois de uma ex-aluna da Casa Pia afirmar que encontrou fotografias do locutor na residência do diplomata em Cascais, onde alegadamente ocorriam orgias com menores.

28 de Novembro de 2002 - Carlos Cruz dá entrevistas aos telejornais locais, nas quais, visivelmente emocionado, reafirmou a sua inocência relativamente a crimes de pedofilia.

12 Dezembro de 2002 - O advogado de Elvas (Alentejo) Hugo Marçal assume a defesa de Carlos Silvino.

30 de Janeiro de 2003 - Carlos Cruz encontra-se com o Procurador-Geral da República (PGR), Souto Moura, para tentar impedir a emissão de uma reportagem da TVI com depoimentos de jovens que o envolvem em actos pedófilos.

31 de Janeiro de 2003 - O médico João Ferreira Diniz, o advogado Hugo Marçal e Carlos Cruz são detidos pela Polícia Judiciária por "fortes indícios" da prática dos crimes de abuso sexual de crianças e lenocínio (fomento da prostituição). O apresentador é detido pela GNR à porta de casa dos sogros, em Quarteira, na presença da mulher e da filha bebé.

01 de Fevereiro de 2003 - Carlos Cruz e Ferreira Diniz ficam em prisão preventiva, enquanto Hugo Marçal, ex-advogado de "Bibi", sai em liberdade mediante uma caução de 10.000 euros.

03 de Fevereiro de 2003 - O embaixador Jorge Ritto garante, num fax enviado à agência Lusa, que nunca participou "em qualquer encontro, reunião ou convívio" com Carlos Cruz.
Dória Vilar, o novo advogado de Carlos Silvino, divulga uma declaração escrita de "Bibi" em que este nega conhecer pessoalmente Carlos Cruz.

04 de Fevereiro de 2003 - A Procuradoria-Geral da República (PGR) esclarece que a detenção de Carlos Cruz, Ferreira Diniz e Hugo Marçal teve por base "fortes indícios" da prática dos crimes de abuso sexual de crianças e incentivo à prostituição, com fins lucrativos.

01 de Abril de 2003 - Detenção do ex-provedor adjunto da Casa Pia de Lisboa Manuel Abrantes.

17 de Abril de 2003 - Carlos Cruz, num depoimento divulgado na TSF e na RTP, reafirma a sua inocência e sustenta que a sua prisão (preventiva) é baseada em testemunhos "falsos, mentirosos e não credíveis".

06 de Maio de 2003 - O advogado Hugo Marçal é ouvido novamente no Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa e fica em prisão preventiva.

20 de Maio de 2003 - Detenção do embaixador Jorge Ritto.

21 de Maio de 2003 - O juiz do processo, Rui Teixeira, pede o levantamento da imunidade parlamentar do deputado do PS e porta-voz do partido, Paulo Pedroso.

22 de Maio de 2003 - Após cerca de 13 horas de interrogatório, o juiz Rui Teixeira decreta a prisão preventiva de Paulo Pedroso.

30 de Maio de 2003 - O humorista Herman José é constituído arguido.

23 de Junho de 2003 - O arqueólogo subaquático Francisco Alves confirma 
ter sido constituído arguido.

15 de Julho de 2003 - António Serra Lopes, advogado de Carlos Cruz, apresenta no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) um pedido de libertação ("habeas corpus") do seu cliente, por considerar a prisão ilegal, que é recusado no dia seguinte.

16 de Julho de 2003 - O juiz Rui Teixeira confirma a prisão preventiva dos arguidos detidos, entre os quais Carlos Cruz, depois de reavaliar os pressupostos que determinaram esta medida de coacção.

25 de Setembro de 2003 - O Tribunal Constitucional (TC) rejeita o recurso interposto pela defesa de Carlos Cruz relativo ao pedido de "habeas corpus" que tinha sido indeferido pelo STJ.

01 de Outubro de 2003 - Carlos Cruz pede ao juiz Rui Teixeira para ser ouvido no âmbito da reavaliação da prisão preventiva, o que é recusado dois dias depois (03 de Outubro).

08 de Outubro de 2003 - Libertação do deputado socialista Paulo Pedroso, ordenada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

15 de Outubro de 2003 - Rui Teixeira confirma a prisão preventiva de Carlos Cruz, após reavaliar os pressupostos da medida de coacção.

18 de Outubro de 2003 - Libertação de Hugo Marçal, por decisão do juiz Rui Teixeira. O advogado sai em liberdade mediante o pagamento de uma caução de 10 mil euros e a obrigação de apresentações periódicas às autoridades policiais.

30 de Outubro de 2003 - o Tribunal da Relação de Lisboa rejeita o recurso de Carlos Cruz sobre a prisão preventiva, no qual a defesa alegava que continuava a desconhecer as circunstâncias em que terão ocorrido os crimes imputados ao apresentador.

26 de Novembro de 2003 - Paulo Pedroso desloca-se ao Instituto de Medicina Legal (INML) de Lisboa para um exame pericial ordenado pelo Procurador João Guerra, que dirige as investigações.

28 de Novembro de 2003 - Carlos Cruz é também sujeito a exame pericial no INML.

03 de Dezembro de 2003 - O Supremo Tribunal de Justiça recusa o afastamento do juiz Rui Teixeira pedido pelos advogados de seis arguidos.

05 de Dezembro de 2003 - O Tribunal Constitucional dá razão a um recurso do embaixador Jorge Ritto, ordenando ao Tribunal da Relação de Lisboa que reformule a anterior decisão sobre o interrogatório ao diplomata e a utilização dos diários apreendidos.

10 de Dezembro de 2003 - A Relação de Lisboa ordena que Rui Teixeira oiça novamente Carlos Cruz, dando assim provimento a um recurso da defesa a contestar a decisão do magistrado, que antes rejeitara o pedido do arguido para ser novamente interrogado.

29 de Dezembro de 2003 - Dez arguidos são formalmente acusados: Carlos Cruz, Herman José, Paulo Pedroso, Carlos Silvino ("Bibi"), Jorge Ritto, Hugo Marçal, Ferreira Diniz, Manuel Abrantes, Francisco Alves e Gertrudes Nunes.

31 de Dezembro de 2003 - O juiz Rui Teixeira altera a medida de coacção aplicada ao médico João Ferreira Diniz, que fica em prisão domiciliária com pulseira electrónica.

09 de Janeiro de 2004 - Novo interrogatório a Carlos Cruz, ordenado pela Relação de Lisboa e que se estende por vários dias, durante os quais são apresentadas pela defesa centenas de documentos para tentar provar a inocência do apresentador.

13 de Janeiro de 2004 - Os advogados que representam a Casa Pia de Lisboa e as alegadas vítimas entregam um pedido de indemnização cível de cinco milhões de euros contra os dez acusados do processo.

07 de Fevereiro de 2004 - O juiz Rui Teixeira confirma a manutenção de Carlos Cruz em prisão preventiva, alegando perigo de perturbação do inquérito e alarme social.

16 de Fevereiro de 2004 - Oito arguidos pedem a abertura de instrução do processo.

18 de Fevereiro de 2004 - A instrução do processo é distribuída por sorteio à juíza Ana Teixeira e Silva.

18 de Março de 2004 - A juíza Ana Teixeira e Silva ouve o ex - funcionário casapiano Carlos Silvino ("Bibi").
O Tribunal da Relação de Lisboa dá razão a um recurso do embaixador Jorge Ritto em que este alegava irregularidades na forma como o processo Casa Pia foi distribuído ao juiz Rui Teixeira.

23 Março de 2004 - Ana Teixeira e Silva inicia a audição das testemunhas arroladas pelos arguidos, entre as quais a perita do Instituto de Medicina Legal que elaborou os "relatórios de personalidade" das alegadas vítimas, o secretário-geral do PS, Ferro Rodrigues, e o porta-voz do partido, Vieira da Silva.

02 de Abril de 2004 - Jorge Ritto é libertado por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. O embaixador fica obrigado a apresentar - se semanalmente às autoridades policiais e a não se ausentar do concelho onde reside (Cascais).

21 de Abril de 2004 - Proença de Carvalho abandona a defesa das alegadas vítimas do processo. A equipa de advogados passa a ser liderada por António Pinto Pereira.

29 de Abril de 2004 - "Bibi" e outros seis arguidos (Carlos Cruz, Paulo Pedrosos, Jorge Ritto, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes) estão pela primeira vez frente-a-frente, numa acareação pedida pelo ex-funcionário casapiano.

04 de Maio de 2004 - Libertação de Carlos Cruz, ordenada pelo Tribunal da Relação de Lisboa. O apresentador de televisão fica em prisão domiciliária.

07 de Maio de 2004 - Libertação do ex-provedor adjunto da Casa Pia Manuel Abrantes, decidida pela juíza Ana Teixeira e Silva. Manuel Abrantes fica em prisão domiciliária.

10 de Maio de 2004 - Início do debate instrutório do processo, no TIC de Lisboa. A provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, assiste pela primeira vez a uma diligência da instrução, enquanto "legal representante da instituição".

31 de Maio de 2004 - Leitura do despacho de pronúncia ou não pronúncia dos arguidos, que encerra a fase de instrução e define quem vai a julgamento e por que crimes. Dos 10 arguidos, a juíza decide levar a julgamento oito, sendo que o arqueólogo subaquático Francisco Alves foi despronunciado de 34 crimes de lenocínio e vai ser julgado apenas por posse ilegal de arma.
De fora do processo ficam também o deputado e ex-ministro Paulo Pedroso e o humorista Herman José.
Os restantes arguidos, embora indo a julgamento por crimes que vão desde o abuso sexual de crianças até lenocínio, viram reduzido o número de crimes pelos quais vinha acusados pelo Ministério Público (MP).
Carlos Cruz vai a julgamento por seis crimes (cinco de abuso sexual de menores e um de actos homossexuais com adolescente), Hugo Marçal por 36 crimes (14 de abuso sexual de criança e 22 de lenocínio), Manuel Abrantes por 51 crimes (43 de abuso sexual de pessoa internada, cinco de abuso sexual de criança, dois de lenocínio e um de peculato de uso).
O médico João Ferreira Diniz será julgado por 18 crimes de abuso sexual de criança, Jorge Ritto por nove crimes (sete de abuso sexual de criança e dois de lenocínio), Francisco Alves por um crime de posse ilegal de arma e Gertrudes Nunes por 35 crimes de lenocínio.
Carlos Silvino, que vinha acusado neste segundo processo de pedofilia por 1.164 crimes, a maioria dos quais por abuso sexual de crianças e abuso sexual de pessoa internada, vai ser julgado por 604 ilícitos. A juíza Ana Teixeira e Silva suavizou as medidas de coacção dos arguidos, ficando apenas Carlos Silvino em prisão preventiva.

31 de Maio de 2004 - O Ministério Público (MP) anuncia que vai recorrer da decisão da juíza Ana Teixeira e Silva de não levar a julgamento o deputado socialista Paulo Pedroso e o humorista Herman José.

14 de Junho de 2004 - António Pinto Pereira, o advogado das vítimas da Casa Pia, anuncia que vai recorrer relativamente a Paulo Pedroso, Herman José e Francisco Alves. Um dia depois, o MP decide recorrer também relativamente a Francisco Alves.

01 de Julho de 2004 - É fixado pelo Governo em 50.000 euros o montante máximo das indemnizações a atribuir, por uma Comissão Arbitral, a alunos e ex-alunos da Casa Pia vítimas de abuso sexual. A Comissão Arbitral é composta por um médico, um advogado e um consultor jurídico.

08 de Julho de 2004 - É sorteado o colectivo de juízes do Tribunal da Boa Hora que vai julgar o processo Casa Pia - Paulo Pinto de Albuquerque (presidente), Manuela Barracosa e Ricardo Cardoso.

09 de Julho de 2004 - O movimento anual de juízes altera a composição do colectivo de julgamento, ficando Paulo Pinto de Albuquerque a ser auxiliado pelos magistrados Ana Peres e José Manuel Barata Lopes.

13 de Julho de 2004 - O juiz presidente do colectivo do processo Casa Pia, Paulo Pinto de Albuquerque, pede licença sem vencimento por um ano, afirmando que a sue decisão não tem nada a ver com o processo, mas sim com razões do foro pessoal. O juiz esclarece que o seu pedido de licença foi feito antes de ser sorteado para o processo Casa Pia, o que era do conhecimento do Conselho Superior da Magistratura (CSM).

15 de Julho de 2004 - Carlos Cruz lança livro intitulado "As grades do sofrimento", em que relata a experiência dos 15 meses que passou em prisão preventiva.

19 de Julho de 2004 - Os juízes desembargadores da Relação de Lisboa Carlos Almeida, Telo Lucas e Rodrigues Simão são sorteados para analisar o recurso do MP sobre a não pronúncia de Paulo Pedroso, Herman José e Francisco Alves.

07 de Agosto de 2004 - Rebenta o escândalo em torno de gravações sobre o processo de pedofilia na Casa Pia feitas por um jornalista do Correio da Manhã, alegadamente furtadas das instalações do jornal e que circulam na Comunicação Social. As gravações incluem, entre muitas outras, conversas 
Comunicação Social. As gravações incluem, entre muitas outras, conversas com o director nacional da PJ, Adelino Salvado, e com uma assessora de imprensa da Procuradoria.

09 de Agosto de 2004 - A Procuradoria-Geral da República (PGR) condena a gravação de conversas "à completa revelia dos interlocutores", classificando o acto como "um comportamento deontologicamente condenável" e "juridicamente ilícito".
Adelino Salvado pede demissão, queixando-se de "violentos ataques" que, em sua opinião, visaram afectar a sua honorabilidade e o bom nome da Judiciária.
O escândalo alastra e faz tremer a figura do Procurador-Geral da República, com partidos da oposição a pedir a sua demissão. A assessora de imprensa da PGR demite-se, enquanto o Presidente da República e o primeiro-ministro reiteram a confiança em Souto Moura.

25 de Agosto de 2004 - A juíza de turno Filipa Macedo marca para 26 de Outubro o início do julgamento do processo Casa Pia e emitiu mandados de captura contra seis arguidos. A medida não chegou a ser executada, porque foi revogada por outro juiz de turno, Jorge Raposo, a 30 de Agosto. O MP também se opôs à decisão da juíza.
Entretanto, é decidido juntar os dois processos de pedofilia da Casa Pia, como pretendia o advogado de "Bibi", José Maria Martins.
"Bibi" era também arguido num outro processo de pedofilia com alunos da Casa, em que é acusado de abuso sexual de quatro menores.

06 de Setembro de 2004 - Dá entrada no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) um pedido do representante das vítimas da Casa Pia para o afastamento do desembargador Varges Gomes, juiz relator do recurso do MP contra a não ida a julgamento dos arguidos Paulo Pedroso, Herman José e Francisco Alves.

29 de Setembro de 2004 - Nova juíza presidente do colectivo, Ana Peres, marca início do julgamento para 25 de Novembro e indica 02 de Dezembro como data alternativa. O colectivo do Tribunal da Boa Hora será composto por Ana Peres (presidente), Lopes Barata e Ester Santos.

21 de Outubro de 2004 - Juíza Ana Peres determina que as audiências do julgamento irão decorrer à porta fechada, sendo disponibilizada na Boa Hora uma sala para os jornalistas, que terão direito a um comunicado sobre o que se passa diariamente na audiência.

23 de Outubro de 2004 - O procurador-geral da República, José Souto Moura, recusa demitir-se caso o Ministério Público seja derrotado no processo Casa Pia, afirmando, em entrevista ao semanário "Expresso", que tal representaria a "politização da justiça".

16 Novembro de 2004 - "Jornal de Notícias" diz que o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou um recurso do advogado de Carlos Silvino (Bibi) relacionado com um acórdão da Relação, de 17 de Março de 2004, que considera que o processo Casa Pia foi distribuído ilegalmente ao juiz Rui Teixeira. Com isto, a juíza Ana Peres terá de validar ou não os actos praticados por este juiz titular do inquérito.

19 Novembro de 2004 - A juíza Ana Peres determinou que apenas 15 jornalistas e 15 pessoas do público poderão assistir à primeira sessão do julgamento, cabendo aos profissionais da Comunicação Social decidir entre si quem são os 15 escolhidos.

25 Novembro de 2004 -  Começa a primeira das quase 500 sessões de um julgamento que passou por quatro tribunais. No banco dos réus: sete arguidos. Todos, à excepção do motorista da Casa Pia, garantiam a inocência. Carlos Cruz, o mais mediático, respondia por seis crimes

Quase seis anos depois do inicio do julgamento, a decisão dos juízes: dois absolvidos e cinco condenados à cadeia entre os 18 e os quase seis anos - penas que os tribunais superiores diminuíram. Não foram provados os crimes de abusos em Elvas.

Carlos Cruz foi condenado a seis anos de prisão por três crimes de abusos sexuais de menores. Esgotados os recursos, entregou-se na prisão da Carregueira em Abril de 2013, já tinha 15 meses de preventiva.

É o preso 706, vizinho de Isaltino Morais e Vale e Azevedo. Um já saiu, outro continua por lá. Carlos Cruz já cumpriu mais de dois terços da pena. Viu os pedidos de liberdade condicional negados, por não assumir culpas nem arrependimento


O Kincora Português?


O Kincora Português? [1]

30 July 2003;   revised 1 December 2003/ 14 January 2004

Recent reports from Portugal  – Have a familiar ring.


For the revised English version of this article, click here

O escândalo sexual mais sério na história da Europa contemporânea talvez seja a crise enfrentada hoje pelo líder do Partido Socialista Português, Eduardo Ferro Rodrigues, e o seu afilhado político Paulo Pedroso, 38 anos, ex-ministro do Trabalho.

Pedroso é um político jovem que goza de alta consideração e destaque e é frequentemente mencionado como o herdeiro natural da liderança do Partido Socialista e um futuro Primeiro-Ministro.   No entanto, foi preso em 23 de Maio de 2003 e permaneceu encarcerado durante mais de 4 meses, devido a 15 acusações de abuso sexual de adolescentes, ex-internos da rede pública de orfanatos Casa Pia.   Em Outubro de 2003, um Tribunal de Recursos de Lisboa libertou Pedroso, cujos colegas o reencaminharam nas suas funções parlamentares.  A sombra das acusações, porém, ainda paira sobre seu futuro político.  


O nome do próprio Ferro Rodrigues chegou a ser citado nos documentos que levaram à prisão de Pedroso, o que o levou a afirmar que esperava acusações contra si próprio.   Um jornal português chegou a publicar que Ferro Rodrigues teria estado presente e testemunhado um caso de abuso de garotos, porém que não teria participado do acto em si.
Este escândalo não é recente.   Durante meses, desde a prisão, em Novembro de 2002, de um antigo servidor da Casa Pia, Carlos Silvino, acusado de estuprar  menores e de encaminhá-los a outros pedófilos, Portugal vem sendo abalado por boatos de que os orfanatos da Casa Pia estiveram infiltrados por uma rede de pedofilia.   Essa rede forneceria garotos para abuso sexual a políticos e celebridades.   Carlos Cruz, um dos mais famosos apresentadores de TV em Portugal, já foi preso, assim como Jorge Ritto, antigo embaixador na África do Sul.   Também presos e aguardando julgamento estão o um ex-médico da instituição (João Ferreira Diniz), e o antigo director financeiro dos orfanatos (Manuel Abrantes).   Todos são acusados de abuso sexual de menores.
A pergunta que hoje domina os boatos políticos em Portugal é:   são culpados ou tornaram-se vítimas de uma caça às bruxas?
O líder socialista Ferro Rodrigues defende a segunda opção, pelo menos no que diz respeito a Pedroso.   Numa declaração distribuída à imprensa na época da prisão de Pedroso,   prometeu opor-se ao que descrevia como uma campanha de falsas acusações.   “Quero deixar claro:   a nossa luta será serena mas determinada e dirige-se – e sempre se dirigirá – contra os responsáveis por essa difamação, qualquer que seja o seu objectivo”, afirmou Rodrigues.   O próprio Pedroso protestou ser vítima de uma calúnia. “Nunca participei de qualquer acto de pedofilia nem de nada semelhante”, declarou numa entrevista colectiva nas vésperas da sua prisão.   Agora que voltou ao parlamento, continua a manter a sua declaração de total inocência quanto a todas as acusações.   Os que o conhecem bem não têm nenhuma dúvida: trata-se de um homem inocente que sofre acusações injustas.
Pedroso é apoiado não só por Rodrigues, mas também por seu predecessor, o antigo líder socialista e ex - Primeiro-ministro António Guterres.   Amigo de Tony Blair, Guterres prometeu testemunhar a favor de Pedroso, se necessário.
Enquanto o escândalo abala Portugal, pode ser oportuno rever sua possível origem histórica, uma vez que os relatos portugueses recentes têm um som familiar:   a ideia da existência de uma rede de pedofilia ligada a um orfanato para fornecer garotos a políticos do alto escalão originou-se na Grã-Bretanha.   Era apenas uma ideia, que apareceu pela primeira vez em 1980 com relação ao albergue de menores trabalhadores de Kincora, em Belfast.   A ideia ressurgiu em 1991, como um significativo desdobramento do escândalo do País de Gales, eventualmente levado aos tribunais.   Na revista Scallywag, hoje não mais publicada, o jornalista Simon Regan escreveu uma reportagem que acusava políticos de alto escalão pelo abuso sexual de garotos do orfanato de Bryn Estyn.
Em ambos os casos, havia um fundo de verdade que acabou surgindo tanto em Kincora quanto em Bryn Estyn:  um ou dois funcionários das instituições haviam realmente praticado abusos sexuais.  Mas a ideia de uma rede de pedofilia que forneceria rapazinhos a políticos sempre foi uma fantasia, tanto no caso de Kincora como no do País de Gales.    
O jornalista que escreveu o livro mais completo sobre Kincora, Chris Moore, ex- repórter da BBC, confirmou.   Embora Moore acreditasse piamente e aceitasse sem reservas quase todas as alegações de abuso sexual, repudiou com firmeza os elementos mais sensacionalistas da história de Kincora na abertura de seu livro:
Desde 1980 o nome Kincora encontra-se associado na memória do público com o abuso homossexual de rapazes ali abrigados.   Devido, porém, à publicação de algumas versões fantasiosas dos acontecimentos, surgiram várias concepções erróneas.   Por exemplo, a palavra “prostituição” foi usada relativamente aos abusos na instituição de Belfast, mas fica claro, a partir dos depoimentos de antigos residentes, que essa acusação não tem fundamento.   Em seus depoimentos às autoridades, as vítimas acusaram apenas quatro funcionários de Kincora, que foram depois condenados no tribunal.   Alguns acusaram funcionários de outras instituições públicas, que também foram condenados.   Ninguém alegou ter sido entregue a outros homens para actividades sexuais, ou que homens vinham a Kincora para manter relações sexuais com rapazes ali internados (Chris Moore,  The Kincora Scandal: Political Cover-Up and Intrigue in Northern Ireland, Marino Books, Dublin, 1996, p. 7)
Enquanto a polícia portuguesa investiga a suposta rede de pedofilia no país (que, como as redes imaginárias alvo das histórias de Kincora e do País de Gales, teria sido mantida em segredo durante anos pela polícia e pelos políticos que sabiam de sua existência), a história sugere que cautela seja a palavra de ordem.

É evidente que se poderá dar o caso de haver plausibilidade em algumas das acusações. Mas o facto de Pedroso ter sido identificado pelo seu primeiro acusador apenas depois de lhe terem sido mostrados alguns retratos de políticos, quando posto ao lado de outras provas descobertas pelo jornalista de investigação português, Jorge Van Krieken, sugere convincentemente ele ser, tal como o afirma, a vítima inocente de uma série de falsas acusações.

Onde quer que esteja a verdade, recordemos as lições de Kincora e do País de Gales:   embora as acusações possam, teoricamente, ser provadas, não podem estar apoiadas apenas em acusações – independemente da sua quantidade.   A segunda lição é:   redes de pedofilia baseadas em orfanatos e servindo os gostos sexuais pervertidos de políticos importantes tendem a existir mais na imaginação do que na realidade.

A mais segura conclusão a que se pode chegar hoje em relação ao antigo Ministro do Trabalho Paulo Pedroso e a outras celebridades portuguesas que também foram presas é que são completamente inocentes.

A dificuldade, porém, é que hoje a imprensa enfoca o caso com uma publicidade sensacionalista mais baseada em boatos do que em pesquisas, o que dificulta sobremaneira que a maioria das pessoas e até os organismos judiciais, cheguem a essas conclusões e ajam de acordo com elas.  

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© Richard Webster, 2003 / 2004
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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

CABO ESPICHEL Conseguimos salvar o fim do mundo





O Santuário de Nossa Senhora do Cabo já foi um dos maiores locais de peregrinação do país, palco de festas magníficas com teatro, ópera e touradas. Décadas de abandono trouxeram a decadência. Agora há um filme que tenta resgatá-lo de anos de impasse político.


ALEXANDRA PRADO COELHO
21 de Setembro de 2014, 0:00



Mas, mesmo “fora de todo o caminho”, atraiu os homens, que sentiram ali, de diferentes formas, a presença do sagrado. Os acidentes naturais, geográficos e geológicos foram sempre, diz ainda Heitor Pato, locais onde “residiam e se manifestavam divindades ou forças transcendentes de que nem sempre se conhecia o nome, embora não se duvidasse do seu poder: como disse o rei Evandro quando conduziu Eneias à rocha Tarpeia e ao Capitólio, aqui habitam deuses, mas não sabemos que deuses são…”.
Por aqui passaram dinossauros, devotos muçulmanos, aqui nasceram mitos, apareceram imagens misteriosas, os homens pasmaram perante pegadas sem explicação. Houve quem acreditasse que aqui ficava uma das portas da Atlântida. Vieram crentes seguindo Nossa Senhora e com as próprias mãos ergueram uma igreja, vieram depois reis e cantores de ópera, fizeram-se procissões riquíssimas, houve luxo e fausto e festa — até tudo cair numa desolação de fazer dó, como se os homens tivessem decidido esquecer o cabo para sempre. Ainda aqui viveram retornados das ex-colónias, mas com o tempo o património foi caindo. Depois todos se foram embora, e o cabo Espichel parecia finalmente mergulhado no silêncio.
Mas, a pouco e pouco, os homens voltaram. Como se não pudessem evitar. Vieram em procissões, e vieram em motos (há um encontro anual de motards). Atraídos pelo santuário e pelos braços agora emparedados dos antigos albergues para peregrinos, pelas ruínas da Casa da Ópera, pela pequena capela junto ao mar. Voltaram, enfeitiçados, a um cabo “fora de todo o caminho”.
Vieram pela natureza — a visível, no vento, no mar, na terra, e no céu, e também aquela que não é imediatamente visível, a vegetação em alguns casos única, os segredos escondidos nas grutas de difícil acesso, a imensa vida no fundo do mar, onde os peixes nadam entre restos de navios afundados. E pelas muitas histórias que o cabo guarda.
O fotógrafo Carlos Sargedas apaixonou-se pelo cabo Espichel há muitos anos, quando foi viver para Sesimbra. Primeiro chegou por terra, depois quis vê-lo a partir do ar. Durante muitos anos fotografou-o de todos os ângulos. E cada vez se conformava menos com o destino a que parecia condenado. Os últimos quatro anos, Carlos passou-os a filmar pendurado em rochas, de fato de mergulhador no fundo do mar, entrando em sítios onde nunca tinha imaginado, falando com toda a gente que lhe pudesse contar mais uma história.
DANIEL ROCHA
O filme Cabo Espichel — Em Terras de Um Mundo Perdido, com música composta por Miguel Valadares, vai ser apresentado no dia 24 em Sesimbra, e será distribuído por instituições que possam ajudar a divulgá-lo publicamente, juntamente com um livro reunindo dezenas de depoimentos de especialistas.
Para contar esta história, Sargedas reuniu desde geólogos como Jacques Rey da Universidade de Toulouse, a directores de museus como Silvana Bessone, dos Coches, ou Miguel Magalhães Ramalho, do Museu Geológico, biólogos como Fernando Catarino ou António Teixeira, arqueólogos como Luís Ferreira, historiadores, padres, espeleólogos, investigadores, arquitectos. Comprou à BBC imagens de dinossauros a andar na terra há milhões de anos, como andaram no cabo Espichel, reconstituiu uma batalha naval em 3D e arranjou actores que ajudaram a relembrar diferentes momentos da história.
“O que eu queria era mostrar às pessoas aquilo que elas não conhecem”, conta, numa pausa do trabalho de tratamento de som do filme, no MVStudios, em Lisboa. “A minha ideia era, se vamos mergulhar, então vamos mergulhar o mais fundo possível.” O objectivo, conta o fotógrafo que é também o fundador da Arrábida Film Comission (organizadora do festival Finisterra e que tem como missão divulgar internacionalmente a região como cenário ideal para filmagens), é ter um filme que mostre o que acredita ser o extraordinário potencial do cabo para grandes produções internacionais de cinema (já aqui foram feitas algumas) e para outros projectos.
As filmagens foram uma aventura. “Quando começámos a mergulhar, estive uma hora para conseguir meter a cabeça debaixo de água. E quando entrei numa gruta pensei: ‘Vou morrer aqui.’ Cheguei a ficar entalado pelo externo, 70 metros abaixo da terra, na escuridão. Entrei em pânico, mas depois consegui ir empurrando um bocadinho de cada vez, com a ponta dos pés… Mas em nenhum outro sítio eu teria estas emoções todas. Há coisas que já ninguém me consegue tirar.”
Meteu-se nisto porque acredita que pode ajudar o cabo Espichel e porque sentiu que não podia ficar de braços cruzados a assistir à degradação daquele espaço. A aventura, na realidade, começou antes do filme, em 2010, quando se lançou a organizar as comemorações dos 600 anos do Santuário do Cabo Espichel (se contarmos 1410 como a data em que terá sido encontrada a figura da Senhora do Cabo).
“Na altura perguntei à câmara o que ia fazer. A câmara disse que não tinha dinheiro. Achei aquilo tão nada que decidi fazer uma proposta. Desafiei uma série de fotógrafos profissionais e amadores a fazer exposições de fotografia, desde a subaquática à histórica. Enquanto as pessoas só virem a degradação e não olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”, explica. “Então, em oito meses, organizei 16 conferências, uma a cada 15 dias. As pessoas achavam que eu estava louco, que ninguém vinha à noite ao cabo, mas ainda me lembro, em Setembro, uma noite, chovia torrencialmente, e aquilo encheu.”
Mas a grande loucura foi o final. Carlos queria encerrar com estrondo e pensou num concerto. “Pensei ‘vamos ter um palcozinho, convidar umas bandas e fazer alguma coisa’. Perguntei no Facebook quem alinhava e apareceu-me uma banda, depois outra — em 15 dias, tinha 16 bandas, a últimas das quais foram os UHF. E então digo: ‘Eh pá, o que é que vou fazer?’ Não tinha um cêntimo, não sabia organizar um concerto.”
Um amigo arranjou-lhe uns andaimes, o técnico da câmara desenhou o palco, os UHF avisaram que mesmo de borla tinham de ter condições técnicas para tocar, a polícia avisou que eram precisas licenças, a ASAE falou-lhe nas casas de banho — e a cada dia o cenário parecia mais assustador. Apesar disso, Carlos fez cartazes e anunciou a data: 11 de Setembro, para contrariar tudo de mau que estava associado a esse dia.
Pediu ajuda aos milhares de amigos no Facebook. “Apareceram cinco. A certa altura, eram cinco da manhã, na véspera do concerto, eu estava em cima do palco, com um vento terrível, a 12 metros de altura, a tentar pôr uma lona e entrei em hipotermia.” Valeu-lhe um amigo da Azóia que ouvira dizer “que estava um maluco no cabo Espichel e resolveu vir ver”, trouxe material de espeleologia e ajudou. “Fizemos um concerto memorável, juntámos quatro mil pessoas. Não fez vento, não havia uma brisa. A partir daí, as pessoas acreditaram.” Carlos chorava perdidamente, os UHF davam entrevistas a dizer que era preciso salvar o cabo, os políticos faziam promessas. O concerto “foi um momento mágico”.
Não é de estranhar: a dimensão mágica está presente desde sempre no cabo Espichel. Heitor Pato conta no seu livro que há até lendas que dizem que no dia do nascimento de Jesus foram registados estranhos fenómenos solares sobre a Península Ibérica e em particular sobre o cabo. Fala-se, em livros antigos, também da presença de tritões (deuses marinhos) e de sereias — que, segundo Pato, seriam na realidade lobos-marinhos.
BRUNO SIMÕES CASTANHEIRA
Quanto aos dinossauros, não restam dúvidas de que uma ou mais manadas passaram por ali há uns 150 milhões de anos. As pegadas, identificadas nos anos de 1970, ficaram marcadas no que era então o fundo mole de uma zona de pântanos, entretanto transformado em rocha que, fracturada, hoje pode ser vista quase na vertical, em placas sobrepostas.
As rochas do cabo guardam também outras marcas, mais pequenas, que os homens não sabiam como interpretar, e daí terá nascido a lenda da Pedra da Mua, segundo a qual a Senhora do Cabo teria subido a arriba transportada por uma mula que deixara na rocha as marcas das patas.
Mas o nome Mua, ou Mu, liga-se também, nas teses do investigador Manuel Gandra, à lendária ilha-continente da Atlântida referida por Platão e desaparecida no oceano Atlântico cerca de 10 mil anos antes de Cristo e que seria igualmente associada ao nome Mu.
Ao longo dos tempos, foram encontrados nas grutas da região sinais de cultos vários — entre as muitas descobertas, inclui-se a de uma tábua de madeira com uma inscrição do Corão em árabe. Heitor Pato admite como provável que tenha havido nas proximidades um santuário islâmico e considera “legítimo supor-se já nessa época [da presença muçulmana em Portugal] a organização de peregrinações religiosas à finisterra sagrada da Arrábida”.
É possível que precisamente por causa do domínio muçulmano, os cristãos escondessem imagens sagradas. Mas, no caso da imagem da Senhora do Cabo, “quase tudo é mito ou fonte de dúvida”, segundo Heitor Pato. A lenda mais comum é a que conta que um velho de Alcabideche e uma velha da Caparica (unindo as duas margens do Tejo) sonharam com o aparecimento da Virgem no cabo e para aí se dirigiram, encontrando a imagem da Senhora em cima de um rochedo, o que levou depois à edificação nesse local, à beira dos penhascos, da pequena Ermida da Memória, onde a história dos dois velhos é contada em azulejos.
Costuma-se localizar a descoberta da imagem no ano de 1410 (há muitas teorias e todas impossíveis de comprovar), mas só mais tarde, já no século XVI, foi construída a igreja, de costas para o mar, da qual hoje nada resta. A actual igreja, da autoria do arquitecto régio João Antunes, foi mandada edificar em 1701 por D. Pedro II. O culto foi crescendo e as romarias foram-se tornando cada vez maiores e foram reforçadas pela ideia de que a Virgem garantia a protecção contra a peste e outras epidemias.
Veio de seguida o “esplendor de Setecentos”, com a imagem transportada em carros triunfais, espectáculos de teatro, fogo-de-artifício, corridas de touros, óperas compostas para a ocasião (daí a Casa da Ópera, situada atrás da ala norte da hospedaria) e a presença dos reis e da corte — D. José chegou a oferecer à Senhora “duas coroas de ouro cravejadas de diamantes e um ramo de jasmins e, em brilhantes, esmeraldas e rubis”.
Voltemos então à noite de 11 de Setembro de 2010, com Carlos Sargedas a chorar porque conseguiu organizar um megaconcerto e porque parece que algo de bom vai acontecer ao cabo Espichel. O que aconteceu depois disso? Nada.
O fotógrafo tem a teoria de que a decadência do cabo coincidiu com o fim da monarquia. “O culto aqui estava muito ligado à monarquia, e então aparece Fátima, que vem ‘destronar’ a Senhora do Cabo. A partir daí houve um abandono total.” Em 1995, a Confraria de Nossa Senhora do Cabo, proprietária do santuário, fez um acordo com o Estado para a recuperação do edificado (classificado como imóvel de interesse público desde 1950): por doação, o Ministério das Finanças ficou com a ala norte da hospedaria, com o objectivo de a transformar em pousada, enquanto a igreja e a ala sul continuam a pertencer à Confraria e os terrenos à Câmara de Sesimbra. O Estado comprometeu-se por seu lado a fazer obras de recuperação do conjunto.
Continuando as duas alas da hospedaria entaipadas e não tendo nenhum projecto de aproveitamento turístico ou outro surgido no local, o que Carlos Sargedas pergunta é porque é que o Estado não devolve a ala norte, dado que a separação das duas alas não permite nenhum projecto com viabilidade. Recebido por todos os grupos parlamentares, Carlos conseguiu apenas que os Verdes dessem algum seguimento ao caso, com perguntas ao Ministério das Finanças, que remeteu o caso para a Secretaria de Estado da Cultura, que alegou já terem sido feitas obras, nomeadamente na igreja, mas sublinhou que o santuário “não integra a lista de monumentos afecta à Direcção-Geral do Património Cultural, não sendo atribuição nem responsabilidade deste serviço assegurar a gestão e valorização deste conjunto ou executar as obras e intervenções de que necessite”.
A Câmara de Sesimbra, em resposta por email à Revista 2, fala numa “imensa teia burocrática” que tem impedido que o problema se resolva e acusa o Estado de nunca ter concretizado o compromisso que assumiu, situação que, diz, “é hoje um dos maiores entraves à recuperação do monumento”.
A autarquia “começou por desempenhar um papel de mediador entre as partes para tentar encontrar uma solução pela via institucional, mas uma vez que já se verificou que dificilmente o Estado avançará para a recuperação, tem-se empenhado em tomar posse da ala norte para, em colaboração com a Confraria, detentora da ala sul, avançar para a recuperação do espaço, com recurso à iniciativa privada ou por intermédio de fundos comunitários como tem acontecido com outro património do concelho”.
Embora não tenha conhecimento de momento de algum investidor interessado, a câmara argumenta que é precisamente para poder iniciar esses contactos que tem tentado tomar posse da ala norte, mas uma proposta na qual “solicita poderes para negociar com eventuais investidores”, feita em 2010 à Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças (DGTF), “nunca obteve resposta”.
Como proprietária do terreno, vai em breve, com fundos do Proder, iniciar a recuperação da Mãe d’Água. Quanto ao resto, ainda no início deste ano, em nova reunião com a DGTF, “a autarquia voltou a insistir na necessidade de tomar posse da ala norte, fazendo uma proposta de permutas de terrenos”, mas, apesar de as propostas “terem sido bem recebidas pela tutela, “o facto é que se passaram meses e não houve qualquer resposta”.
Impasse, portanto. Carlos continua a lutar contra a frustração de ver que nada acontece. A sua grande aposta é o cinema. Fez o filme que esta semana vai apresentar (com apoio do Proder, mas muito dinheiro seu investido) precisamente para mostrar ao mundo como o cabo serve de cenário para todas as histórias possíveis, “dos Piratas das Caraíbas ao Indiana Jones, passando pelo Parque Jurássico”. Diz que os produtores que tem trazido a Portugal através da Arrábida Film Comission ficam encantados e que o país tem uma luz única para cinema. Só lamenta que não haja mais incentivos para atrair as grandes produções.
Desafiou, entretanto, um escritor para fazer um argumento que pretende vender a Hollywood, uma espécie de “Código da Vinci do cabo Espichel” e, “se tivesse dinheiro, ia tentar convencer o Tom Hanks” a participar. “Temos tudo aqui, batalhas navais, vikings, evasões francesas, túmulos, segredos, uma imagem de origem desconhecida, pegadas de dinossauros. Agora, o cinema faz o resto.”
Carlos Sargedas esteve enregelado em cima de um palco às cinco da manhã agarrado a uma lona, quando ninguém acreditava que ia conseguir montar um espectáculo; esteve entalado numa gruta a pensar que ia morrer; gastou o dinheiro que tinha e o que não tinha para fazer um filme sobre o cabo — e promete continuar a filmá-lo porque ficaram histórias por contar. Já venceu muitos medos. Não está a pensar desistir. O cabo onde certamente “habitam deuses” enfeitiçou-o para sempre.