domingo, 24 de agosto de 2014

BES, O BURACO DOS ESPÍRITO SANTO ( 5 PARTES )

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BES, o Buraco dos Espírito Santo (Parte 1)


A 4 de Agosto de 2014, o Banco Espírito Santo (BES) deixou de o ser. O segundo semestre do ano termina com um prejuízo de 3,6 mil milhões €, valor nunca antes registado em Portugal.
Mas vamos por partes.
A crise internacional
Todos os acontecimentos que envolveram o GES, nos últimos meses, são enquadrados pela crise financeira e económica mundial, iniciada em finais de 2007. Como sabemos, esta crise mundial precipitou massivas falências de empresas por todo o globo. O investimento recuou. O desemprego cresceu exponencialmente e o consumo foi afectado.
Através da diminuição das receitas provenientes dos impostos (sobre o consumo e rendimentos em declínio) e do aumento das despesas (predominantemente, através da injecção de dinheiros públicos em buracos e fraudes financeiras), as finanças estatais são abaladas. Os défices dos Estados aumentam, alimentados por um galopante endividamento interno e externo (dívida pública). Os Estados necessitam de um crescente volume de financiamento.
A pressão dos mercados financeiros sobre as finanças públicas vai crescendo e os governos dos vários países fazem recair a factura da bebedeira financeira sobre as costas das suas populações. Este é o retrato desde finais de 2007.
Em Portugal, o Governo Sócrates aplica 3 Planos de Estabilidade e Crescimento (PEC). A razia sobre o nível de vida da população é de tal ordem que o PEC 4 é chumbado nas ruas com as gigantescas mobilizações de 12 de Março de 2011. A 23 de Março de 2011, apenas 11 dias após aquela mobilização, o Governo Sócrates cai. Por esta altura, estava também perturbada a banca nacional, com um endividamento externo no limite e os seus balanços repletos de títulos de dívida pública portuguesa (e não só), fruto da especulação nestes mercados. A 8 de Abril de 2011, o demissionário Governo Sócrates formaliza o pedido de financiamento à Troika. Este acontecimento é o inaugurar de uma nova era no país.
Os banqueiros nacionais tentaram impossibilitar a incursão da Troika até que, para os salvar (aos bancos), a mesma se tornou “inevitável”. A Troika estabeleceu o seu conjunto de exigências: (i) impôs reforços de capital ao sector financeiro português, muitos deles feitos através de dinheiros públicos; (ii) obrigou os bancos a baixarem os seus rácios entre crédito e depósitos de um valor que rondava os 160% para um máximo de 120%; e (iii) sujeitou os 8 maiores grupos financeiros nacionais a auditorias, sob a sua orientação.
Este conjunto de exigências veio desafiar e enfraquecer a margem de manobra do poder financeiro na periferia da Europa, nomeadamente, em Portugal. Este é o plano de fundo das intervenções externas: para salvar os grandes grupos financeiros mundiais, há que alargar as suas fontes de riqueza através do aprofundamento do domínio dos países periféricos face aos países mais centrais. Os banqueiros periféricos, habituados a determinar o rumo nacional dos acontecimentos, viram-se sob as ordens e o escrutínio de terceiros.
A 21 de Junho de 2011, toma posse o Governo de Passos Coelho. Um governo altamente alinhado com o plano da Troika. Enquanto um gritava “mata”, o outro clamava “esfola”.
O Grupo Espírito Santo (GES) – Não é má gestão, é crime!
No contexto geral da crise internacional, os negócios do GES, um emaranhado composto por cerca de 400 empresas, que actua nos sectores financeiro, imobiliário, construção, saúde, turismo, agricultura, energia, em 4 continentes diferentes, deixa de gerar a rentabilidade suficiente para financiar os investimentos anteriormente desenvolvidos. Os negócios passam então a funcionar constantemente, desde 2008, através do recurso ao endividamento. Ou seja, para pagar as dívidas de hoje, é pedido sucessivamente mais crédito que, por sua vez, será “pago” amanhã.
A dívida cresceu e adensou-se, até porque os lucros e, consequentemente, os dividendos do BES (que eram a principal receita do GES) caíram até deixarem de existir.
O próprio Ricardo Salgado admite, em Maio de 2014, em entrevista ao Jornal de Negócios, que “a crise bateu forte e bateu no Grupo [Espírito Santo]”.
O endividamento é de tal ordem que em Maio de 2014, a holding mãe do GES, a Espírito SantoInternational (ESI), para além de se encontrar em falência técnica, tem ainda uma dívida de 1,2 mil milhões € ocultada da sua contabilidade. Segundo o contabilista da holding, desde 2008 e sob a orientação de Ricardo Salgado, as contas tinham vindo a ser falsificadas como forma de encobrir a situação calamitosa do grupo.
De acordo com a informação tornada pública, a situação real da ESI cifrará uma dívida total que ronda os 7,3 mil milhões €, superior ao activo em 2,5 mil milhões €. Por outras palavras, se, no presente momento, o GES quisesse pagar toda a sua dívida, os seus activos não eram suficientes, faltando ainda 2,5 mil milhões €. Abriu-se a caixa de Pandora.
Precisamente em Maio de 2014, disparando os seus últimos cartuxos, Ricardo Salgado terá tentado financiar o GES em 2,5 mil milhões €, primeiro, através do Governo de Passos Coelho e depois através de altas figuras do regime angolano.
A primeira alternativa envolvia o financiamento daquela verba, através da intermediação do Estado português, por meio da CGD e também do BCP (ambos sob intervenção estatal). Após um penoso resultado eleitoral europeu para os partidos do Governo e a quase um ano das próximas eleições legislativas, Passos Coelho, na esperança de capitalizar ao máximo a crise do PS, não quis, no momento, agarrar a batata quente enquanto existissem mãos frias que pudessem adiar o problema. A segunda alternativa foi igualmente abortada. O Estado angolano, a braços com uma garantia bancária prestada ao BES Angola, no valor de 4,3 mil milhões € (lá iremos mais à frente), deu igualmente uma resposta negativa.
Hoje pode dizer-se que Ricardo Salgado e o GES estavam já completamente submersos e lançavam braços às últimas botijas de oxigénio.
Perante as irregularidades contabilísticas detectadas no GES, a Procuradoria do Luxemburgo abriu inquéritos a três empresas do grupo, sediadas naquele país, nomeadamente, à Espírito Santo Control(ES Control), à ESI e à Espírito Santo Financial Group. O GES acaba mesmo por pedir, aos tribunais luxemburgueses, a gestão controlada destas empresas como forma de estabelecer negociações com os seus credores.
O endividamento do GES foi de tal magnitude que atingiu um ponto sem retorno. Para pagar a dívida existente, não existindo crescimento da actividade do grupo, este recorreu ao crédito sucessivamente. Para além da falsificação de contas e sem mais por onde se financiar, foi criado, no GES, um “sistema de financiamento fraudulento”. Foram estas as palavras do Governador do Bando de Portugal (BdP). Depois de esgotados todos os parceiros que estariam em condições de financiar o grupo, este começou a fazê-lo através dos clientes do BES, primeiro através de fundos de investimento por si geridos e depois através de papel comercial. O BES chegou a emprestar, directamente, 1,5 mil milhões € ao GES.
Para além do BES, 2 mil milhões terão sido emprestados por institucionais, entre os quais estão a PT com 900 milhões € e a petrolífera do Estado venezuelano com 800 milhões €. Várias seguradoras do GES terão emprestado cerca de 230 milhões €, e 900 milhões € terão sido emprestados por pequenos investidores, tais como clientes do BES e clientes da gestora de fortunas suíça, a Banque Privée Espírito Santo. Estes valores deixam antever os milhares de particulares, pequenas e médias empresas que terão emprestado as suas poupanças ao GES, através da compra de papel comercial. É caso para dizer que o cancro foi alastrando e contaminando tudo por onde passou.
Em inícios de Julho de 2014, os receios em torno da solidez financeira do GES ganham corpo ao ter-se conhecimento público de que a suíça Banque Privée Espírito Santo está em incumprimento quanto ao reembolso de alguns clientes que tinham aplicações em dívida da ESI. Esta gestora de fortunas suíça acaba mesmo por vender, de seguida, parte do seu negócio ao banco suíço CBH como forma de pagar as aplicações dos seus clientes.
Como se não bastasse, o mês de Julho termina com a ESI a falhar o pagamento dos 900 milhões € emprestados pela PT. Este acontecimento teve e terá consequências catastróficas para a fusão que a PT estava a preparar com a brasileira Oi.
O mês de Julho termina com os bancos Espírito Santo nos EUA, Líbia, Panamá e Venezuela a serem alvo de investigações. É mais que certo que também estes bancos serviram para financiar a dívida do GES.


O que aconteceu no GES? Um brutal endividamento do grupo, que tinha vindo a ser escondido das suas contas e que desembocou na sua falência. A falência do grupo arrastou-se no tempo, agravando a sua situação, através de um financiamento fraudulento proveniente dos bancos e seus clientes pertencentes ao GES.

É urgente uma auditoria independente ao Grupo Espírito Santo!



BES, o Buraco dos Espírito Santo (2) - Prisão e confisco para quem roubou o BES!
O financiamento concedido pelo BES aos negócios do GES foi considerado o maior dos problemas para o banco, pois como já foi referido emprestou cerca de 1,5 mil milhões €, tornando-se mesmo o maior credor do seu próprio grupo.
Em inícios de Junho de 2014, surge o outro dos grandes problemas para o BES: o escândalo financeiro no BES Angola. Este banco, a actuar no mercado angolano, perdeu o rasto a empréstimos concedidos de forma discricionária, pela sua administração, no valor de 5,7 mil milhões €, 80% do total da carteira. Grande parte dos quais terão sido concedidos a empresas ligadas a altas figuras do regime angolano. Daí que o Estado angolano tenha prestado uma garantia de cerca de 4,3 mil milhões €, como contraparte dos créditos concedidos pelo BES Angola.
Como se não bastasse, chegou a vir a público que alguns dos milhões desaparecidos em Angola terão chegado a contas pessoais de Ricardo Salgado e do seu braço direito Amílcar Morais Pires.
A participação do BES no BES Angola é avaliada em 670 milhões € e o banco português tem empréstimos concedidos ao banco angolano no valor de 3 mil milhões €. O BES Angola está, neste momento, intervencionado pelo Estado angolano. Consequentemente, a garantia no valor de 4,3 mil milhões €, prestada pelo Estado angolano, foi revogada e o BES foi impedido de reclamar os créditos concedidos ao banco angolano. Para além deste gigantesco buraco financeiro, é perdida uma das mais importantes fontes de lucro para o BES e, por sua vez, para o GES.
O início do mês de Junho é também a altura em que o BES termina um novo aumento de capital na ordem dos mil milhões €. Mais uma operação de reforço do seu nível de capital que pretenderia equilibrar os empréstimos concedidos pelo BES ao restante GES.
A família, para evitar que a sua participação ficasse demasiado diluída no capital do banco, tenta acompanhar o aumento de capital. Pede 100 milhões € ao banco japonês Nomura e acaba o aumento de capital com 25% do BES. Deixa de ter uma posição de controlo mas continua a ser o seu maior accionista. Como garantia de boa cobrança daquele empréstimo de 100 milhões, a família dá 5% das acções do próprio BES.
Um mês depois, face ao crescendo de dúvidas levantas quanto à solidez do GES e à dimensão da exposição do BES ao seu grupo, as acções do BES desvalorizam abruptamente e a família Espírito Santo acaba por perder os 5% do BES para o banco Nomura. A participação da família ficou nos 20%.
A crescente desconfiança na solidez do GES e do BES culmina, no dia 14 de Julho, com a substituição do líder histórico Ricardo Salgado por Vítor Bento. Para a nova administração entram também João Moreira Rato, que vai ocupar o cargo de administrador financeiro, e José Honório, como vice-presidente da comissão executiva do banco.
A família perde a gestão e grande parte da propriedade do Banco.
Os últimos dias de Julho de 2014 são o fim de uma era: Ricardo Salgado é detido, ouvido em tribunal e constituído arguido no caso Monte Branco, estando em causa a prática de crimes de burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais. O banqueiro sai em liberdade mediante o pagamento de uma caução de 3 milhões €. Pelos vistos, a impunidade tem um preço para quem o pode pagar!
No dia 30 de Julho, o BES apresenta prejuízos semestrais nunca antes vistos em Portugal - 3,6 mil milhões €. Estes resultados, segundo palavras do Governador do BdP, reflectem “a prática de actos de gestão [, pela administração de Ricardo Salgado,] gravemente prejudiciais aos interesses do BES e a violação de determinações do BdP que proibiam o aumento da exposição a outras entidades do GES.”
No dia 31 de Julho são descobertas, pelo BdP, perdas de 1,5 mil milhões € provenientes da actuação da administração de Ricardo Salgado, nos seus últimos dias no Banco. Este valor contribuiu para que os prejuízos do Banco aumentassem exponencialmente e alcançassem o valor de 3,6 mil milhões €. Não se sabe do paradeiro daquele milhar e meio de milhão. A restante administração de Salgado acaba suspensa pelo BdP e nos dois dias seguintes as acções do banco caem 40% e 50%, respectivamente.
O culminar de todo o episódio dá-se com o BES a deixar de ter liquidez assegurada pelo BCE, a par da obrigação daquele reembolsar a totalidade do seu crédito junto do Eurosistema, em cerca de 10 mil milhões €. Sem acesso às linhas de financiamento do BCE, o BES está em suspenso. 3 de Agosto de 2014, Domingo, sob a orientação do BCE, e contra todas as promessas do Governo e BdP, dá-se a intervenção do Estado no Banco e no GES.
É necessária uma gestão pública da banca! Não a soluções “a la BPN”!



BES, o Buraco dos Espírito Santo (3) - Impunidade para banqueiros, custo para a população!
A solução encontrada para o BES: impunidade para banqueiros, custo para a população!
A solução desenhada pelos de cima é, para já, “habilidosa”. Para os de baixo, cedo se transformará em desastrosa. Os activos do Banco foram divididos entre “activos bons” e “activos maus”, sendo estes considerados os de difícil recuperação.
Os activos de difícil recuperação, fruto da gestão fraudulenta da administração de Salgado, ficam estacionados no antigo BES, que preserva o seu nome e os seus accionistas. As operações do BES em Angola, Miami, EUA e Líbia ficam no BES, assim como os créditos concedidos a sociedades do GES. Passivos relacionados com anteriores accionistas, membros da administração de Salgado (e seus familiares) ficam também no BES. Eventuais indemnizações que possam decorrer das situações que configurem fraude ficam no BES. Esta poderá parecer uma boa solução, se o grupo não estivesse já completamente descapitalizado e as fortunas pessoais não estivessem já a salvo em offshores. O BES é então transformado num “banco mau”, um zombie descapitalizado e endividado. A família Espírito Santo fica como principal accionista de um banco tóxico e na presidência da sua administração ficará Luís Máximo dos Santos que já faz a gestão da falência do BPP.
O conjunto de “activos bons” constitui aquilo que se transformou no Novo Banco, capitalizado pelo Fundo de Resolução. A administração do Novo Banco é composta por Vítor Bento, José Honório e Moreira Rato. Os restantes 3 elementos transitam da anterior administração de Salgado.
O Fundo de Resolução foi criado em Dezembro de 2012, pelo Ministro das Finanças, Vítor Gaspar, sob a orientação da Troika. Este fundo foi formulado com o objectivo de prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adoptadas pelo BdP (como é o caso) e é alimentado por contribuições das instituições financeiras e pelas receitas do imposto extraordinário, cobrado pelo Estado, sobre o sector bancário – ou seja, é dinheiro público.
Como este fundo apenas dispunha, em Agosto de 2014, de cerca de 380 milhões € e o Novo Banco necessitava de uma dotação de capital de 4,9 mil milhões €, o Estado emprestou o dinheiro dos contribuintes ao Fundo de Resolução. Será um empréstimo a 3 meses renovável até 2 anos, com uma taxa de juro que não trará lucro ao Estado, pois será exactamente a mesma que é paga à Troika. O Estado, através do dinheiro público injectado no Fundo de Resolução, será então o único accionista do Novo Banco.
O Governo de Passos Coelho e o Governador do BdP, esforçam-se por estimular a ideia de que a intervenção no BES é para estabilizar a situação financeira portuguesa e que a participação do Fundo de Resolução no Novo Banco é para ser vendida o mais rapidamente possível (no limite, até ao final do ano de 2014).
De facto, é provável que a intenção seja vender o banco o mais rapidamente possível, pois só assim a capitalização do Novo Banco deixará de pesar no défice público e não terá maiores repercussões políticas sobre o Governo. O pior será concretizar o plano em cima da mesa. Quem irá comprar o Novo Banco, que saiu do maior buraco financeiro português, por 4,9 mil milhões €, estacionado numa economia parada, dentro de um período de apenas 4 meses?
A Ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, já garantiu que os contribuintes não vão pagar a intervenção no BES porque foi accionado o Fundo de Resolução que é da responsabilidade do sistema financeiro (ou seja, dos restantes bancos portugueses). Relembramos que foi o capital público que serviu para capitalizar a restante banca portuguesa, portanto, não será através do artifício de um tal Fundo de Resolução que a factura nos irá sair das costas.
A intervenção no BES é apenas mais um episódio (por sinal, o pior em Portugal) da receita que tem vindo a ser aplicada: os de cima, banqueiros e grandes empresários, esbanjam, criam dívidas e desemprego; e os de baixo, vivendo cada vez pior, ainda pagam a factura!
Todos os acontecimentos descritos podem significar alterações profundas no Regime e Estado portugueses. Espelham um processo alongado de enfraquecimento da elite política e empresarial nacional, um deslocamento de importantes instituições nacionais para mãos de estrangeiros e um salto qualitativo no processo de dependência de Portugal face aos países centrais da Europa.
Prisão e confisco para quem roubou o BES!

BES, o Buraco dos Espírito Santo (4) - A face política
A face política do buraco BES/GES
Existe uma pergunta que subsiste: como é que uma instituição como a família Espírito Santo, uma das mais importantes, se não a mais importante do presente Regime, que sobreviveu com uma importância semelhante a todos os regimes dos últimos 140 anos, presente em 4 continentes, apelidada de “dona disto tudo”, perde o seu poder abruptamente, em apenas 3 meses?
 A complexidade da resposta envolve um conjunto de intervenientes.
Primeiro a questão: qual tem sido o papel dos intervenientes externos? Através da Troika, o BCE tem exercido uma enorme pressão para que a banca europeia se dote de maiores níveis de capitais, pressão à qual o BES não ficou alheio. Desde 2008, o BES reforçou o seu capital em cerca de 3,4 mil milhões €, forçando as suas holdings a endividarem-se para ir tentando manter a posição de controlo da família Espírito Santo, enfraquecendo o grupo de conjunto.
Esta constante pressão é acompanhada de fortes restrições à concessão de crédito e de um prolongado escrutínio interno ao sector.
O Banco de todos os regimes, habituado a negociar, pressionar e manobrar vários governos, encontra-se com um interlocutor cujo interesse é defender os interesses da banca internacional, mais poderosa. Um interlocutor que, para salvar o Euro, pretende adensar o processo de dependência dos países periféricos da Europa. Um interlocutor que, sob este projecto, não negoceia, impõe.
Segundo, no caso português, o Governo de Passos Coelho, composto por uma série de tecnocratas, sempre se pautou pela determinação em ir mais longe que a própria Troika. O memorando assinado com o FMI, Comissão Europeia e BCE formaram a base do programa do Governo de Passos Coelho e, como tal, os interesses aí espelhados distanciaram banqueiros e governantes. A banca ficou agrilhoada pela crise, demasiado exposta às dívidas públicas e ao sector empresarial do Estado, factores que, conjugados com sucessivos reforços de liquidez, fragilizaram os bancos nacionais. A sua capacidade financeira e, consequentemente, negocial saíram diminuídas.
O primeiro episódio foi registado logo em Agosto de 2011, quando o Governo de Passos Coelho contratou, por ajuste directo, o Banco de Investimento da Caixa e o Banco de Investimento americano Perella Weinberg para assessorar o Estado nas privatizações da EDP, REN e Galp. Apesar de o BES, após pressão sobre do Governo, ter conseguido vários contratos para assessorar o Estado noutras privatizações, o episódio evidencia alterações nas relações.
Em meados de 2013, numa reunião da Associação Portuguesa de Bancos, o Ministro das Finanças, Vítor Gaspar, também conhecido como “o quarto elemento da Troika”, perante dúvidas levantadas por Ricardo Salgado quanto à sustentabilidade da dívida pública portuguesa, retribui duramente: “Se eu fizesse declarações sobre a dívida do BES tinha muito a dizer.” É a maior reprimenda ao banqueiro de que há memória, se é que existiu outra.
Para além de denunciar, já na altura, o que se viria a desenrolar, esta é apenas a demonstração de que Vítor Gaspar, com uma vida profissional intimamente ligada às mais altas instituições europeias, é uma das faces dos grandes interesses europeus. E esses interesses ditam que a estabilidade do centro financeiro internacional será feita à custa de um abrupto processo de aprofundamento da dependência da periferia. Não haverá espaço à defesa de interesses periféricos. Na sequência deste episódio, Ricardo Salgado chega mesmo a desculpar-se ao Ministro.
Mas Vítor Gaspar não seria o único elemento do Governo altamente alinhado com os planos da Troika. Após a demissão de Vítor Gaspar, em Julho de 2013, como forma de assegurar a continuidade do trabalho desenvolvido, é nomeada para o seu lugar o seu braço direito, a então Secretária de Estado do Tesouro, Maria Luís Albuquerque.
Em meados de 2013, os dois, Gaspar e Albuquerque, protagonizaram o episódio dos “contratos swap”, evidenciando a sua proximidade à alta finança internacional em detrimento das empresas públicas. A dupla terá tido conhecimento, desde o início do seu mandato, das perdas potenciais acumuladas para o Estado com este tipo de contratos, sem nada ter feito, acumulando perdas potenciais calculadas em 3 mil milhões €. Entre os bancos que beneficiaram e beneficiam com a venda de tais contratos encontramos o Merril LynchJP MorganGoldman SachsCredit SuisseDeutsche BankSantander,BarclaysABN Amro ou o BNP Paribas.
Vítor Gaspar seria apenas a cara mais visível do interesse da grande finança. Álvaro Santos Pereira, por seu turno, no Ministério da Economia e do Emprego, sob o mote de "fazer tudo para continuar a diminuir a despesa do Estado", acompanhou parte do escrutínio das contas públicas que colocou a nu os negócios por detrás das parcerias público-privadas (PPP). Os encargos do Estado com as PPP foram considerados excessivos pelos credores externos e, como tal, acabaram por ser renegociados impondo uma redução substancial dos lucros garantidos às concessionárias e aos financiadores – a banca nacional.
Quanto ao BES, este foi, desde a década de 1990, um dos principais bancos intervenientes nos aliciantes negócios das PPP: enormes somas de investimento público, financiadas pela banca, com risco praticamente nulo. Além do financiamento a projectos de grande envergadura, o BES foi estruturando o seu posicionamento no sector das PPP também como construtor (através da Opway) e gestor de infra-estruturas através da participação em várias concessionárias. Tendo o BES uma intervenção tão activa nos negócios com o Estado, o impacto da renegociação dos vários contratos terá sido igualmente considerável.
Em Julho de 2013, aquando da saída de Vítor Gaspar, Álvaro (como gostava de ser tratado), por seu lado, encontra-se num ministério vazio, cujas competências tinham vindo a ser distribuídas por outras pastas. Acaba também por sair nas alterações governativas desse verão.
Em Fevereiro de 2012, a renegociação das PPP, os processos das privatizações, a reestruturação do sector empresarial do Estado e a situação da banca eram pastas que tinham já sido retiradas das competências do Ministério da Economia e do Emprego e “privatizadas”, por Passos Coelho, a uma empresa do falecido António Borges. Este era um elemento que tinha a Troika no sangue: foi vice-presidente do banco americano Goldman Sachs, consultor do Departamento do Tesouro dos EUA, colaborou com a UE na criação da União Económica e Monetária e foi Director do Departamento Europeu do FMI. Perante este currículo, realmente, não se distingue onde começa o homem e onde acaba a Troika.
O Secretário de Estado Adjunto de Passos Coelho, que negociou (ou melhor, que aceitou sem dissonância) o programa da Troika foi Carlos Moedas. Para este, cumprir o memorando da Troika foi “executar políticas necessárias a bem dos portugueses” (palavras do próprio no site do Governo). Também Carlos Moedas passou pela alta finança, nomeadamente, o banco americano Goldman Sachse o alemão Deutsche Bank.
João Moreira Rato, o homem escolhido por Vítor Gaspar para dirigir os destinos da emissão da dívida pública portuguesa como presidente do IGCP e o agora Administrador Financeiro do Novo Banco (activos bons do BES), fez também passagem pelo falido banco americano Lehman Brothers, pela financeira americana Morgan Stanley e pelo já repetido Goldman Sachs.
José Luís Arnaut, alto quadro do PSD, que esteve profundamente envolvido, e em simultâneo, tanto do lado do governo, como do lado das empresas interessadas nas privatizações da REN, ANA, TAP e CTT, envolveu-se ainda nas negociações dos swaps, representando a alta finança, e nas reestruturações do BCP e Banif. Embora não tenha ocupado nenhum cargo oficial no Governo de Passos Coelho, Arnaut foi uma sombra de tal envergadura, para os interesses da finança internacional, que acabou recentemente contratado para o Conselho Consultivo Internacional do Goldman Sachs. Sob a sua responsabilidade terá, entre outros, o mercado do sul da Europa e ainda Angola e Moçambique. Este conselho serve sobretudo para abrir portas a futuros negócios do banco americano.
Temos então um Governo com uma equipa nas finanças e economia, ministérios com que a banca mais se relaciona, altamente ligada e assessorada pelos interesses da alta finança mundial e da Troika. Para termos uma noção o banco Goldam Sachs é conhecido por colocar ex-funcionários nos lugares de topo que decidem o rumo da economia global - de tal forma que os concorrentes lhe dão a alcunha deGovernment Sachs.
O BES que durante os 40 anos de democracia teve 25 dos seus quadros nos vários governos, vê assim os interesses da finança mundial intrometerem-se entre si e o governo português. O próprio BES assiste, no seu último aumento de capital, à sua invasão por fundos de investimento americanos, altamente especulativos, através do aumento das suas participações que passaram a totalizar cerca de 16% do banco. São eles o SilchesterCapital ResearchBlackRock e Baupost.
Fim dos privilégios para políticos e banqueiros, a casta rasca!

BES, o Buraco dos Espírito Santo (5) - A face política do buraco BES/GES
Como terceiro factor que contribuiu para a fragilidade do BES, elencam-se as quezílias entre os pares de Salgado.
A mais destrutiva terá sido a guerra com Pedro Queiroz Pereira (PQP), industrial, accionista de controlo da Semapa e antigo aliado dos Espírito Santo. Este era igualmente administrador e accionista (com 7%) da ES Control, holding de topo do GES.
As relações entre as famílias Queiroz Pereira e Espírito Santo terão sido pisadas em 2001, quando o BES apoiou o chumbo da oferta pública de aquisição de PQP sobre a Cimpor, tendo o Banco chegado a apoiar a francesa Lafarge na compra de uma parte da cimenteira.
Após este episódio, as relações ainda pioraram com a luta pelo controlo da Semapa. Segundo a informação publicada, Ricardo Salgado terá gerido, durante uma década e por intermédio de uma sociedade luxemburguesa anónima, uma importante participação no grupo Semana. Faltaria apenas 1% para que Salgado dominasse, com os seus aliados, o grupo Semana. Em 2012, a intenção do banqueiro seria mesmo a de controlar a Semapa, o maior grupo industrial português.
PQP, ao descobrir, sentiu-se traído e terá montado um plano para afastar os Espírito Santo do capital social do seu grupo, pelo menor preço possível. Criou uma equipa, dentro da Semapa, para passar a pente fino as contas da ES Control. Constituiu um dossiê que revelava todo o buraco financeiro do GES. Aliou-se ao BPI, com mais de 10% da Semapa, e foi este que detectou a dimensão da exposição que o fundo Espírito Santo Liquidez, vendido aos clientes do BES, tinha a títulos de dívida de empresas do GES. Em Outubro de 2013, PQP, enquanto administrador e accionista da ES Control e como forma de pressionar a saída dos Espírito santo da Semapa, denunciou ao BdP indícios de irregularidades naquelaholding, levantou problemas sobre a estrutura de gestão e fez passar a ideia de que existiam fragilidades financeiras no GES.
Esta era em 2013, apenas uma das frentes de batalha de Salgado, a maior, sem dúvida. A par desta, e talvez como consequência, justou-se a factura deixada pela administração de Álvaro Sobrinho no BES Angola e, entre a família, Ricciardi começou a levantar dúvidas sobre a capacidade de liderança de Salgado.
Foi precisamente a partir de Outubro de 2013 que o reinado do BES se começou a desmoronar.
Como quarto e último factor surge a justiça portuguesa. Se na última década todos os casos criminosos que envolviam os Espírito Santo passaram impunes, é precisamente agora que um caso de fuga fiscal cria um clima de condenação e um escrutínio da vida da família.
Olhando para a última década, o BES viu-se envolvido: (1) Caso Portucale com ministros do CDS-PP; (2) Caso dos Submarinos com Paulo Portas; (3) Caso Mensalão e o financiamento do PT de Lula da Silva; (4) fraude na gestão dos CTT, onde se inclui a venda de imóveis valorizados do dia para a noite; (5) Operação Furacão e (6) Operação Monte Branco relacionadas com fraude fiscal e branqueamento de capitais; (7) 14 milhões de euros que Ricardo Salgado não declarou ao fisco; (8) informação privilegiada aquando da venda de acções da EDP; casos de branqueamento de capitais em (9) Angola e (10) Espanha, etc. e nenhum dos casos teve qualquer espécie de responsabilização ou punição da família Espírito Santo.
Perante o relativo isolamento do poder político, a vulnerabilidade trazida pelos casos de corrupção, uma população calejada de crimes financeiros e, principalmente, perante o enfraquecimento financeiro do GES a justiça parece estar em ruptura com os interesses instalados e em sintonia com os interesses externos que se vão instalando.
É certo que nada aconteceu a Ricardo Salgado ou à sua administração pela gestão danosa do seu grupo, é certo que a justiça nada fez que pudesse, de facto, punir a continuada actividade corrupta do banqueiro. Mas, por outro lado, também é verdade que nunca antes nenhum banqueiro português terá pago uma caução de 3 milhões € para permanecer em liberdade.
Parece que a justiça, em defesa dos novos interesses da banca internacional, ainda que não resolvendo nada, é um pouco menos branda com os velhos interesses instalados.
Todos estes factores são indícios daquilo que poderá prepara-se no futuro.
Se até aqui a banca nacional era detida maioritariamente por capitais nacionais, isso está prestes a deixar de ser uma realidade. Este é um factor fundamental para a independência de um país. O sector financeiro gere os recursos de toda uma economia. Com eles influência e determina o poder político, dita o investimento, vai construindo o caminho para o futuro (quer seja bom ou mau). Sem eles está a mando de interesses externos, a dependência do país intensificasse de forma mais rápida e os povos periféricos vão-se tornando reféns das grandes economias mundiais que daqui só querem extrair mais e mais riqueza.
O conjunto de factores enunciados ditou uma enorme fragilidade do capital nacional. Não existindo nenhum banco português com força financeira para entrar no Novo Banco, este pode muito bem ser o fim de um Regime, que até agora era dominado pela burguesia nacional, e que daqui em diante será determinado pela burguesia internacional. Com a venda do capital do Novo Banco, muito provavelmente, a estrangeiros, seremos um país confinado ao desenvolvimento que a banca internacional ditar.
A médio prazo, o plano da Troika, de devastação da economia portuguesa, será levado às últimas consequências. Os serviços públicos, como a saúde e educação, sofrerão uma destruição ainda mais acentuada até tudo estar privatizado. O investimento público e privado serão condicionados, o Estado ficará refém de interesses internacionais. Os salários continuarão a baixar como forma de extrair mais lucro e as condições de vida continuarão num logo processo de destruição. A economia tornar-se-á progressivamente mais dependente. Este poderá ser um duro processo de colonização, não só de Portugal mas de todos os países periféricos.
Não que a banca na mão de capital privado nacional nos assegurasse alguma destas realidades. Que se olhe para os últimos anos. Mas o que é facto é que a banca na mão de estrangeiros só irá adensar e acelerar o processo de empobrecimento.
Basta de impunidade! Prisão e confisco para quem roubou o BES, GES e o País!
É urgente uma auditoria independente ao Grupo Espírito Santo!
Nem um só despedimento dos trabalhadores do BES e GES!
É necessária uma gestão pública da banca! Não a soluções “a la BPN”!

José Aleixo

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

OUTONO E ELOGIO DA CAÇA




Miguel Sousa Tavares
13 Outubro 2009



Dantes, aos primeiros sinais de Outono, eu entrava em depressão. Mais do que a chegada do Outono, o que me deprimia era o fim do Verão, pois que sempre fui devoto dessa verdade enunciada por Rilke: "só o Verão vale a pena". Imaginar um longo ano pela frente sem as praias e os banhos de mar, sem as noites quentes nos terraços e pátios, as noites em que o luar atravessa a sombra dos pinheiros e vem pousar no chão do quarto onde dormimos de janela aberta, a maresia trazida pelo vento de sueste nas manhãs marítimas, as frutas de Verão nos mercados, o peixe fresco brilhando ainda com luminosidades de prata, as vozes que se transmitem ao longe, dobrando esquinas e ruelas do que resta dos nossos souks em aldeias ou até em Lisboa, tudo isso, imaginar um ano inteiro sem tudo isso, deixava-me irremediavelmente triste e desamparado, como se as marés de equinócio tivessem varrido todas as possibilidades de alegria, todos os dias felizes. Se o Verão morria assim, eu morria também com ele, de cada vez.
Mas, há uns anos, tudo mudou. Alguns amigos começaram a levar-me à caça e eu descobri que, além do mar, também havia a terra, e depois do Verão havia o Outono: foi uma descoberta tardia, mas decisiva, como se tivesse descoberto uma quinta estação do ano e, mais do que isso, um novo pretexto para a felicidade. Rapidamente tomei a minha decisão e resolvi tornar-me caçador. Comecei pelo princípio, passo por passo, e são muitos: as aulas e o exame para obtenção da carta de caçador, aprendendo coisas para mim inteiramente desconhecidas, como o ciclo de vida e hábitos dos animais, modalidades de caça, princípios de balística, como criar e treinar cães de caça, etc.; depois, atravessei todo o imenso processo burocrático para a concessão de licença de porte de arma, escolhi as armas (que ainda hoje são as mesmas), experimentei vários tipos e marcas de cartuchos até perceber com quais me dava melhor e fiz um mínimo de aulas de tiro; finalmente, experimentei dois cães - um tão bom, que mo roubaram, o outro tão mau que foi dispensado e hoje é um urbano-depressivo, cheio de doenças e tiques de personalidade.
Muito embora o campo não me fosse propriamente estranho, eu não sabia como eram os campos de caça. Não fazia ideia do mundo novo, primordial e deslumbrante, que iria encontrar. Não imaginava as manhãs de geada ou de orvalho suspenso nos arbustos e nos ramos das árvores, as manhãs de frio polar ou as de chuva e lama, onde nos enterramos até à alma e maldizemos a decisão de ter saído da cama - que logo depois bendizemos, assim que os primeiros raios de sol rompem as nuvens e o frio ou que a primeira peça de caça tomba no chão. Não imaginava as longas caminhadas por cabeços ou planícies, por leitos secos de rios ou através da água, o cheiro a esteva e a giesta, ou as longas emboscadas, atento a todos os ruídos, ao simples agitar de uma folha, adivinhando a presença próxima dos animais antes de os ver. As esperas silenciosas à beira de um riacho, molhando a cara na água cristalina, aproveitando para colher poejos ou beldroegas tardias, aproveitando para pensar na vida, no essencial, no que verdadeiramente importa. A sós, com os três maiores luxos que um homem pode ter: espaço, tempo e silêncio. Porque aqui não há multidões nem urbanizações turísticas, não há pressa nem vozearia de conversas inúteis.
E não sabia que os 'selvagens dos caçadores' (que os há, como em tudo o resto), também conseguem, outras vezes, reunir um grupo de amigos que tudo pode separar à partida, mas que finalmente se encontram unidos por essa paixão primitiva e talvez inexplicável da caça. Gosto especialmente dos jantares que antecedem as manhãs de caça, das conversas soltas e sem pressa, das anedotas que dão a volta e regressam no final da época. Há quem imagine que as conversas dos caçadores são sobre futebol, mulheres e política. Pois lamento desiludi-los: são sobre armas, cartuchos, cães, viagens, o estado dos campos e das culturas e as memórias antigas de 'lances' de caça, umas vezes inventadas, outras reais, que cada um guarda consigo e a que só a um outro caçador vale a pena contar. E gosto muito das pequenas pensões ou hotéizinhos manhosos de província, onde se joga cartas à lareira do salão (a inevitável 'sueca') e onde os quartos têm pesados armários antigos de madeira e uma casa de banho 'moderna' enxertada no meio do quarto, com o polibã para poupar espaço. Gosto de passar em revista e preparar todo o 'material' de véspera: verificar se as armas estão bem limpas, se os cartuchos escolhidos são os melhores para o que se vai caçar, se a roupa e tudo o resto estão preparados para não perder tempo de manhã, em que cada minuto conta. E depois é tentar adormecer cedo - o que nem sempre é fácil, porque a adrenalina e a excitação já começam a fazer-se sentir. E, se o sono vier cedo, hei-de adormecer feliz, pensando que no dia seguinte vou à caça, enquanto tantos outros, lá na cidade, vão gastar a noite e a madrugada em bares, discotecas, festas e concertos onde se atropelam para atrair as atenções dos fotógrafos das revistas sociais. E,quando eles, se calhar, ainda nem vão no primeiro sono, já eu estou sentado à mesa (trôpego de sono, é verdade) para algum extraordinário pequeno-almoço, como, por exemplo, açorda alentejana com ovo e bacalhau.
"Ah", dirão vocês agora, "e o prazer sádico em matar animais - disso não fala?". Falo sim, para dizer que não existe tal coisa como o prazer de matar. Existe, sim, o prazer de acertar, que é uma consequência lógica do prazer de atirar. Nenhum caçador gosta de errar o tiro ou, pior ainda, de errar parcialmente e deixar um animal ferido, em vez de morto redondo. É por isso que a ética exige que, no caso da caça grossa, que pode resistir muito tempo a um ferimento, o caçador vá atrás da peça ferida até lhe poder dar o chamado tiro de misericórdia. E é por isso, também, que nenhum caçador que se preze atira a uma ave que não esteja em voo ou a um coelho ou uma lebre que não esteja em corrida. Claro que há caçadores que o fazem, mas eu não caço com eles e os meus amigos também não. Também não caçamos o que não comemos e fazemos questão de saber cozinhar uma canja de pombo, uma perdiz de escabeche ou um arroz de tordos. E de nos sentarmos todos à mesa, terminada a 'jornada', e ficarmos à conversa pela noite adentro, moídos de cansaço e de felicidade tranquila, de bem com a consciência, de bem com a natureza e as suas leis, em paz contra as imperfeições do mundo, as suas falsidades e fúteis aparências.
E se me deu para escrever este texto é, não só porque abriu a época de caça, mas também por outras duas razões. Uma, porque amanhã, diz a lei, é 'período de reflexão' e eu mantenho a tradição de não falar de política antes de eleições. Outra, porque a caça é um grande tema de reflexão e uma grande escola de vida e de valores - de companheirismo, de fairplay, de conhecimento e respeito pela natureza, de paciência, persistência, de reaprendizagem de coisas primordiais e evidentes por si mesmas. E, por isso, antes que a multidão politicamente correcta da nova doutrina urbana e 'civilizacional' queira julgar como selvagens a caça e os caçadores, ou mesmo bani-los face à lei, convinha que a sua arrogante ignorância ficasse a saber que falam do que não sabem e não percebem, e que, para infelicidade sua, jamais entenderão.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

O MISTÉRIO SUIÇO DO ESPÍRITO SANTO


A sociedade de gestão de fortunas de Michel Canals nasceu em Genebra, mas seria tão helvética como os pastéis de nata. Qual é o rasto português seguido pela Operação Monte Branco? 

Por Miguel Carvalho com Paulo Pena
25 de Julho de 2014





Artigo publicado na revista VISÃO de 31 de Maio de 2012 

O suíço detido em Portugal por suspeita de operar uma rede que promovia a fraude fiscal e o branqueamento de capitais teve os seus dias de ouro antes de criar a Akoya Asset Management, em Genebra.
Quadro superior da União de Bancos Suíços (UBS), Michel Canals reinou durante décadas como diretor sénior para o mercado português. Entre outras coisas, isso significava ter à sua volta uma valiosa equipa de private bankers (entre dez e uma dúzia) e gerir cerca de 8 mil milhões de euros de clientes portugueses.
Naquele pelouro dourado, o banqueiro cuidou, também, das fortunas e aplicações de clientes angolanos, sobretudo da órbita dos homens do regime, embora, neste caso, não existam estimativas sobre os valores.

Michel Canals era, pois, uma mina ambulante para quem desejava acolchoar as suas poupanças e dividendos fora do território nacional. Em Lisboa ou Luanda, passeava-se nos corredores e gabinetes VIP com certo à vontade, mas sempre delicado, discreto e diplomata. "Conhecia de trás para a frente todas as figuras poderosas e influentes. Não existe um banqueiro português que não saiba quem ele é", assegura um antigo administrador de uma instituição financeira que com ele privou.

A crise do subprime e a derrocada da UBS em Wall Street, em 2008, terminaram abruptamente com este idílio. Mas nem por isso Michel e os seus mais próximos deixaram escapar um lamento.

Afinal, saíram pela porta grande, levando para casa chorudas maquias à conta de rescisões amigáveis. A Akoya, gestora de fortunas sobre a qual incide a investigação portuguesa, nasceu logo a seguir, em 2009.
Esta empresa tinha os seus alicerces assentes na fama, experiência e contactos milionários de Michel Canals. O suíço compôs, então, um afinado trio de acionistas recorrendo a dois ex-colaboradores da UBS: Nicolas Figueiredo e José Pinto, também arguidos no processo que corre no Ministério Público. A crise nos EUA e a fuga de clientes em massa daquela instituição financeira, receosos da quebra de sigilo bancário, fizeram o resto. Para a Akoya avançar firme e segura, faltava apenas "um partner rico".
Segundo fontes ligadas à investigação e ao setor financeiro, Canals tê-lo-ia encontrado na Espírito Santo Commerce (ESCOM), empresa detida, à época, pelo grupo de Ricardo Salgado. "Canals e os seus sócios ficaram com 30% e a ESCOM com 70% do capital", referiram à VISÃO.

Isto mesmo, de resto, foi plasmado há dias, de forma desassombrada, no blogue Arma/Crítica, de João Rendeiro, especialista em mercados internacionais.

"A Akoya foi fundada por Michel Canals e os seus dois ex-Directores de private banking da UBS. Fizeram um acordo de associação com a ESCOM detendo os três sócios gestores 30% do capital", escreveu, a 21 de maio, o antigo presidente do Banco Privado Português (BPP), por cuja polémica falência responde ainda hoje nas instâncias judiciais. Rendeiro admite, também, serem "muito baixas" as estimativas sobre o volume de dinheiro português que estaria a ser gerido pela Akoya, a rondar mil milhões de euros.
No entanto, a história da associação a Canals é desmentida de forma categórica pela ESCOM à época sediada na Holanda.

Através da Cunha Vaz & Associados, consultores de comunicação da empresa, o presidente Hélder Bataglia apenas reconheceu ter mantido contactos com o suíço a título particular. "O senhor Canals estava cotado internacionalmente, vinha referenciado e recomendado como pessoa séria na área da gestão de ativos, e propôs ao dr. Bataglia uma boa aplicação financeira no exterior através da Akoya", explicou António Cunha Vaz à VISÃO, sem conseguir precisar, no entanto, a data em que tal ocorreu. "É possível que, confiando no prestígio de Canals como gestor de fortunas, o dr. Bataglia tenha feito algum negócio ou uma boa aplicação na Suíça, mas isso é assunto do seu foro privado. Nem toda a gestão de ativos é ilícita ", esclareceu.

O chairman da ESCOM, empresa vendida, no ano passado, pelo Grupo Espírito Santo (GES) à petrolífera estatal angolana Sonangol, não se recorda de ter conhecido os outros sócios do suíço. Quanto ao artigo publicado pelo fundador do BPP no seu blogue, "não oferece credibilidade", atira Cunha Vaz. "Mantenho tudo o que escrevi", assegura João Rendeiro, escusando-se, porém, a prestar mais declarações sobre o tema.

BATAGLIA, A ESCOM... E O MUNDO
Hélder Bataglia dos Santos será desconhecido da maioria dos portugueses, mas faz milagres em Vieira de Leiria, freguesia onde nasceu o seu pai. O filho tem agora o nome numa placa. Na terra, vivem ainda alguns familiares e a população engalanou-se para recebê-lo, a 24 de julho do ano passado. Nesse dia, Bataglia decidira acudir aos utentes do centro social e paroquial numa hora difícil: através da Fundação ESCOM, cuja missão é promover o mecenato e causas sociais, entregou á instituição 400 mil euros destinados a obras de remodelação. Perante a dádiva, até a companheira do empresário, Rita Galliani, teve direito a um pátio batizado com o seu nome em azulejo. "É da responsabilidade de todos os que podem, serem solidários. Só assim teremos sociedades mais justas, equilibradas e que dão resposta a problemas sociais", disse Bataglia, na ocasião, sem que alguns dos presentes pudessem conter as lágrimas diante da aparição do benemérito.
O caso nem sequer é virgem, pois os bombeiros de Vieira de Leiria também têm caído nas suas graças. À custa disso, até já foi comprada uma ambulância.

Tempos e gestos a fazer lembrar uma outra figura emoldurada nas memórias de Vieira de Leiria: Lúcio Feteira, o milionário das limas e da Covina que teve contas na Suíça geridas por... Michel Canals, de cujos valores Duarte Lima é suspeito de se ter apropriado em parte, conluiado com o suíço da UBS.

Tal como o industrial de outros tempos, Bataglia tem o mundo aos seus pés.
Se não é assim, parece. Nascido em Portugal, tinha meses quando foi parar a Baía Farta, no Namibe, Angola. Fez o serviço militar em Cabinda, especializando-se nas ações psicológicas. Estreou-se nos negócios em 1972, em Benguela, a vender produtos alimentares e na seca do bacalhau.
Após a independência, e durante uma década, foi comerciante no Médio Oriente. Os anos 80 trouxeram-lhe pontes para os mercados de Leste e, em 1992, ligou-se ao banco de Ricardo Salgado, criando a sub-holding Espírito Santo Commerce, em estreita colaboração com Luís Horta e Costa, seu braço direito.
Por uma soma que terá oscilado entre os 400 e os 500 milhões de euros, a Sonangol -acionista de peso do BCP, da GALP e da Amorim Energia -adquiriu a ESCOM ao GES, em 2011. Bataglia ficou com 10% do capital e manteve o comando do grupo. O investimento foi conduzido por Manuel Vicente, o homem que, já este ano, deixou a liderança da petrolífera para se tornar ministro de Estado e da Coordenação Económica e provável sucessor do Presidente José Eduardo dos Santos. O "n.° 2" do regime foi recentemente associado a suspeitas de peculato e branqueamento de capitais, na sequência de uma investigação do conhecido jornalista angolano Rafael Marques.
A ESCOM mantém especiais interesses nos recursos naturais angolanos. Associada a russos, chineses e parceiros locais (entre os quais o grupo GEMA, de José Leitão, antigo chefe da casa civil da Presidência), gere negócios nos setores do gás, petróleo, agricultura, energia, mineração, imobiliário, diamantes e obras públicas.
Bataglia é ainda administrador executivo do BES Angola, de cuja estrutura acionista fazem parte Isabel dos Santos, a poderosa filha do Presidente, e a Portmill, holding ligada a Hélder Dias Vieira, mais conhecido por Kopelipa, antigo general e chefe da casa militar da Presidência, cujos investimentos no Douro têm dado brado.
O banco era, até há pouco tempo, presidido por Álvaro Sobrinho, agora suspeito de participação num esquema de lavagem de dinheiro que corre os seus termos em Portugal e ele contesta.
O grupo ESCOM, esse, continua imparável.
Há três anos, tinha em carteira projetos no valor de 951 milhões de euros e prometia investimentos de 1,4 mil milhões de dólares até 2014. O edifício ESCOM, na colina de Luanda, é o símbolo imponente da grandeza do império.
Trata-se de uma torre a rondar os 150 metros, a maior da capital. Custou 92 milhões de euros e quase alcança o domínio dos deuses: nos pisos superiores, existem habitações de luxo e duas penthouses que, em 2007, estavam avaliadas em 3 milhões de euros cada. Na torre, estão instalados, entre outros, os escritórios angolanos da Ongoing e a redação local do semanário Sol.
Hélder Bataglia considera Angola um "país democrático", de "gente séria".
Por isso, os investimentos daquele país em Portugal só podem ser olhados "de boa fé", afirmou, numa entrevista ao Diário Económico. A ESCOM, na verdade, "não sente a corrupção" e garante que, para fazer negócios, "não é necessário estar associado a alguém do Governo".
Bataglia lamenta, isso sim, os constrangimentos portugueses ao nível da burocracia, fiscalidade e justiça. Não criam condições mais favoráveis ao investimento estrangeiro, assinala.

TESTA-DE-FERRO CHINÊS?
As influências e negócios do grupo, com cerca de 2 mil trabalhadores, estendemse aos EUA, Venezuela, Argentina, Congo, Zimbabué e África do Sul, entre outros países. Mas nem sempre os negócios correram bem: em Angola, a ESCOM escorregou nas pescas, nos aviões da Air Gemini e nas bananas da Chiquita. 
Em Portugal, o grupo viu o seu nome referenciado em ilícitos fiscais, na Operação Furacão, nas investigações do caso Portucale e no processo das contrapartidas das aquisições da Defesa, ao tempo do ministro Paulo Portas, cuja compra de submarinos foi sendo associada a suspeitas de financiamento partidário ao CDS.
Cônsul honorário do Burkina Faso, membro da associação de cooperação ELO, Bataglia esteve em Angola com Sócrates e Passos Coelho, a quem reconhece méritos na abertura de portas à cooperação bilateral. A ele atribuem-lhe especiais influências na renegociação da dívida de Angola a Portugal. Hélder foi investido comendador pelo Presidente da República, Cavaco Silva, homenagem ao seu papel no estreitar das relações luso-angolanas.

O administrador da ESCOM tem casas em Lisboa, Luanda e na ilha do Mussulo, mas também no seleto bairro da Recoleta, em Buenos Aires. É proprietário de um barco e comenta-se que comprou uma ilha no delta do rio Paraná (Argentina), rumor que ele desmente. "Angola é o meu país, foi lá que vivi, é onde gosto de estar e onde mantenho relações do meu tempo de infância e de escola. A maioria dos meus amigos está lá", referiu, numa entrevista.

"O Hélder é uma das poucas pessoas que conheci que se enquadra nesse perfil de empresário global. É um excelente relações públicas em qualquer parte do mundo", disse dele Ricardo Salgado, dono do Grupo Espírito Santo, à Exame.

Para os EUA, Hélder Bataglia não tem, de facto, um estatuto menor. Bem pelo contrário: o seu peso nos negócios planetários far-se-á sentir em zonas menos transparentes, mesmo não se identificando ilegalidades. De acordo com um relatório do Congresso norte-americano divulgado em meados de 2009 -The 88 Queensway Group, A Case Study in Chinese Investor´s Operations in Angola and Beyond, no original -Bataglia é um dos três empresários mais influentes do planeta na promoção dos interesses chineses fora das fronteiras do país e nos negócios da China com Angola. O magnata dos diamantes israelita, Lev Leviev, e Pierre Falcone, condenado em 2009 por tráfico de influências e comércio de armas, no processo chamado Angolagate, são os outros dois. O empresário franco-argelino viria, entretanto, a ser absolvido das acusações, em abril último, após recurso.

Os norte-americanos associam Bataglia a investidores com ligações a ministérios e aos serviços de inteligência chineses e angolanos, apesar de algumas demarcações do Governo comunista de Pequim. No referido documento, redigido há três anos, diz-se que o presidente da ESCOM tinha a reputação de ser "um amigo" com acesso privilegiado a Sassou Nguesso (Presidente do Congo), a Hugo Chávez (Venezuela) e ao falecido Nestor Kirchner (Argentina), embora nem todos os seus negócios registem um saldo positivo. Em Buenos Aires, uma promessa de investimento de 20 mil milhões de dólares por parte de Bataglia ficou no papel e ia criando um incidente diplomático com as autoridades chinesas. Segundo a Economist, o 88 Queeensgroup -referência ao endereço em Hong Kong onde aparecem registadas centenas de sociedades das quais mal se consegue identificar o rasto acionista -assemelha-se a um "consórcio de negócios opaco, mal conhecido e inimputável" que vem trazendo especial preocupação ao Congresso norte-americano. Bataglia, contudo, sempre negou ser um "testa-de-ferro" dos chineses, embora não recuse méritos na aproximação entre Pequim e Luanda.

A AMIGA ANA BRUNO
Por cá, o microcosmos de Hélder Bataglia surge ligado, em parte, a Ana Bruno, figura cujo alegado envolvimento nos esquemas de Michel Canals se encontra por esclarecer em toda a dimensão. A administradora da Newshold e parceira do suíço na gestão do empreendimento que vai gerir o hotel do futuro aeroporto de Berlim, é advogada de Bataglia e gerente da Super Limite, Unipessoal, Lda, sociedade de compra e venda de imóveis detida a cem por cento pelo presidente da ESCOM.

Ana Bruno dá a cara por dezenas de empresas que vão do imobiliário ao turismo e a sua sociedade de advogados, na torre 3 das Amoreiras, estará na mira dos investigadores da Operação Monte Branco.
Suspeita-se que este e outros escritórios possam ser a fachada legal de negócios relacionados com a Akoya, nos quais estariam envolvidos advogados que funcionariam como correios de dinheiro para Francisco Canas, o "Zé das Medalhas", detido preventivamente sob suspeita de ter feito circular ilegalmente milhões de euros entre Portugal e a Suíça, ao sabor do carrossel idealizado por Canals.
Segundo fontes da investigação, o suíço teria contactos com inúmeras pessoas, sobretudo advogados, a quem proporia a angariação de clientes com dinheiro para abrirem contas em bancos suíços, primeiro via UBS e depois através da Akoya. A contrapartida passaria por uma comissão indexada aos montantes que os clientes dos advogados colocavam no estrangeiro.
O esquema obrigava a depositar fortunas no estrangeiro, através de sociedades portuguesas detidas por off-shores e fundações para esconder o verdadeiro titular.
Ana Bruno é tida como angariadora de clientes angolanos para Canals e, na conta de uma familiar suas, os investigadores terão já identificado valores que passaram pelo processo de branqueamento no exterior. Michel Canals é defendido neste processo por Francisco Mendonça Tavares, advogado do escritório Ana Bruno & Associados e administrador de várias empresas, entre as quais a South Atlantic Capital, SA, também de compra e venda de imóveis, que mantém com outro advogado do escritório de Ana Bruno.

DESDE O CASO MODERNA...
Esta não é a primeira vez que a atual proprietária do semanário Sol vê o seu nome associado a casos polémicos. O primeiro a dar-lhe visibilidade foi o "Caso Moderna", em 1999. Note-se: Ana Bruno nunca foi acusada nem condenada, mas o tribunal registou alguns testemunhos e referências curiosas. A advogada foi sócia da cooperativa Dinensino e do escritório Espaço Chiado, com José Braga Gonçalves. Também passou pela Amostra, empresa de sondagens que Paulo Portas liderou.

À época, Ana Bruno não se livrou da fama de ter ajudado a condenar o homem forte da gestão da universidade e contribuído para ilibar o antigo líder do CDS. Além de terem passado pelas suas mãos, a mando de Braga Gonçalves, cheques comprometedores e envelopes com dinheiro, Ana Bruno teve ainda o seu IRS pago através de um cheque da Amostra.
Segundo Paulo Portas, o valor corresponderia a "dinheiro entregue por conta de honorários" relativos à condição de "advogada de jornalistas d´O Independente". O descontrolo financeiro da Moderna e da Dinensino serviu, por exemplo, para pagar viagens a Ana Bruno e familiares à Disneylândia, Londres e Barcelona, além de estadias no Algarve e no Alentejo.
A advogada recebia prendas pagas na Loja das Meias a expensas da universidade.
A confiança de Portas em Ana Bruno não deixou dúvidas à época: ela era, disse, "a advogada da família há muitos anos".
A dada altura, até o alertou para o facto de estar a incorrer em irregularidades fiscais, ao passar recibos inválidos a alunos do centro de sondagens, episódio que Portas corrigiu pagando uma verba de 35 mil contos às Finanças. Ana e Portas foram apenas testemunhas no processo.

Neste momento, e a fazer fé no curso das investigações, Ana Bruno terá mais com que se preocupar. De resto, em diversos centros do poder do País receia-se que o processo esteja mais próximo da imagem do rato a parir a montanha do que o inverso. Desde a vinda do caso a público, estará a assistir-se a uma corrida à regularização tributária de depósitos, valores mobiliários e outros instrumentos financeiros colocados no exterior. O prazo termina a 30 de junho. Os portugueses podem declarar ao Banco de Portugal os ativos depositados e não declarados no estrangeiro, pagando uma penalização de 7,5% de imposto, ficando, assim, livres de procedimento criminal. Isto, se outros ilícitos não tiverem sido cometidos. Pela via pedagógica, judicial ou tributária, o caso Canals poderá servir de exemplo.
Exceto para aqueles que, soube a VISÃO, confiaram de tal modo no sigilo das práticas de Michel e da Akoya que ainda hoje não saberão onde está o dinheiro.
O quase silêncio de Ana Bruno
A advogada Ana Bruno, sócia de Michel Canals num empreendimento em Berlim, demarcou-se, numa declaração difundida através do site do semanário Sol, do qual é administradora, "da participação em qualquer tipo de rede criminosa" que a associe ao ex-banqueiro suíço e à Akoya. Ana Bruno manifestou "profunda indignação com as insinuações" que, segundo diz, estão contidas no artigo da última VISÃO, as quais considera "desprovidas de qualquer base probatória". Para a advogada e empresária, a intenção é "denegrir o seu bom nome e prejudicar a sua atividade profissional".
Como tal, promete "retirar as inerentes consequências legais, reagindo no âmbito das instâncias competentes". A declaração foi publicada na noite de quarta-feira, 23, véspera da saída da VISÃO para as bancas. A advogada, contudo, esteve indisponível para responder às nossas perguntas na terça, 22, dia de fecho da edição. Entretanto, também não respondeu a outro email enviado na última quinta-feira, 24, para a sua sociedade de advogados, reiterando o pedido inicial.

Ricardo Castro, a outra ponta
Na véspera de ser detido, na passada semana, por suspeita de operar também uma rede de branqueamento de capitais através da Arcofinance, em Genebra, com clientes portugueses do banco privado Edmond de Rothschild, o luso-suíço Ricardo Castro jantava num conhecido restaurante de peixe fresco e marisco da Boca do Inferno, em Cascais.
Nessa noite, a mesa que o antigo banqueiro da UBS em Portugal ocupava não podia estar mais perto da fama: mesmo ali ao lado, jantavam, entre outros, Joaquim Oliveira, dono da Controlinveste, Fernando Seara (presidente da Câmara de Sintra) e a esposa Judite de Sousa (diretora-adjunta da TVI) e Miguel Relvas (ministro-Adjunto).

Detido para interrogatório no dia 23, Ricardo Castro saiu com uma caução de 300 mil euros, imposta pelo juiz de instrução Carlos Alexandre. Por agora, o único ponto em comum com o caso Akoya é Francisco Canas, o "Zé das Medalhas", cuja loja de troféus, na Rua do Ouro, em Lisboa, será, no entender das autoridades, a fachada para a transferência de avultadas quantias de dinheiro para a Suíça.