Solidariedade
e equidade entre gerações e a infame guerra aos velhos
30.12.2013
Para pessoas decentes
e bem formadas, a guerra aos velhos promovida pelo primeiro-ministro a pretexto
da justiça e equidade entre gerações é absolutamente infame.
A solidariedade e
equidade entre gerações são princípios civilizacionais basilares. É nesse terreno
fecundo que se enraíza e aprofunda a ética de responsabilidade que, por todo o
lado e a cada momento, procura construir as necessárias pontes entre presente e
futuro, individual e coletivo.
Nenhuma sociedade
contemporânea minimamente decente e justa será sustentável contra essa ética de
responsabilidade alicerçada na solidariedade e equidade entre gerações. Na
eventualidade da sua derrota ou significativo enfraquecimento, a decência e a
justiça não tardariam a ficar aplastadas pela sua subordinação à iniquidade e
ao egoísmo que resultariam inexoravelmente do princípio alternativo
neoliberal: cada um por si e salve-se quem puder.
Está em curso a
revogação prática do pacto social baseado nos princípios da solidariedade e
equidade entre gerações. A estratégia escolhida é a do facto consumado,
desprezando a fundamentação e a consensualização através do normal
funcionamento do processo político, designadamente no plano da sua conformidade
constitucional. O instrumento preparatório dessa subversão é a guerra entre
gerações projetada nacionalmente pelo próprio primeiro- ministro, que procura
levantar a seu favor o ressentimento, a animosidade e a agressividade de
novos contra velhos.
Denunciados como
perigosas ameaças à salvação das finanças públicas e ao bem-estar futuro das
novas gerações, maltratam-se os velhos como se estivessem a beneficiar de
pensões excessivamente generosas e imerecidas à custa de mais impostos e/ou
mais dívida pública, parasitando as gerações ativas, sobretudo as
novas gerações.
Maltratam-se também
como se fosse vital para o país castigá-los publicamente, acusando-os de
predadores insaciáveis de rendimentos alheios para os quais nada teriam
contribuído, máxime dos rendimentos das novas gerações. Explícita ou
subliminarmente, a guerra contra os velhos assenta na ideia, suposta
óbvia e incontroversa, de que os velhos roubariam às novas gerações qualquer
possibilidade de melhoria futura do seu bem-estar, de tal maneira pesado seria
o fardo que pretenderiam impor-lhes. Na nossa história não haveria roubo maior
e mais iníquo. Vejo com verdadeiro horror a guerra entre gerações que o
primeiro-ministro vem promovendo. Tenho para isso quatro razões sólidas.
Em primeiro lugar, por
uma questão de princípios civilizacionais basilares que presidem à minha visão
da boa sociedade, como já referi.
Em segundo lugar,
porque as transferências entre gerações funcionam de modo exatamente contrário
ao que vem sendo falsamente propagandeado: os beneficiários líquidos têm sido
historicamente as gerações mais novas e não as mais velhas. De facto, as
investigações mais profundas e documentadas até hoje efetuadas provam, contra
os resultados enviesados na base do enganador quadro informacional da primeira
vaga da contabilidade dita geracional, que nos países ocidentais, no
cômputo geral de uma vida, o dinheiro tem ido dos velhos para os novos e não em
sentido contrário.
Em terceiro lugar,
porque mesmo que as gerações mais velhas venham a ser beneficiárias líquidas no
exclusivo plano das transferências entre gerações – o que é muito provável nas
próximas décadas, em data variável de país para país – o quadro de avaliações
de equidade entre gerações tem de ter em conta muitos outros domínios, para
além das transferências que, frequentemente, são apenas uma parte menor desse
quadro. O quadro geral de avaliações tem de ponderar o balanço dos legados
recebidos e transmitidos entre gerações, em especial intervivos mas não só, bem
como os correspondentes beneficiários líquidos na sucessão do tempo.
Cada geração, e cada
indivíduo, vive, realiza-se e ganha a sua vida aos ombros das gerações
precedentes que lhe fizeram o legado de sucessivos blocos de capital humano, de
capital cultural, organizacional e social e de capital físico infra-estrutural
ou diretamente produtivo. Os legados geracionais de todas estas formas de
capital contribuem decisivamente para o bem-estar coletivo e individual das
novas gerações. Deste ponto de vista é abundantemente claro que o legado das
gerações hoje na reforma ou muito próxima dela abriu e continuará a abrir às
novas gerações um quadro de possibilidades e competências infinitamente mais
vasto do que aquele que receberam.
O Portugal de hoje não
é de modo algum comparável ao Portugal dos anos 50 e 60 do século passado,
muitíssimo mais pobre tanto no plano do rendimento e nível de vida como no do
capital humano, cultural, organizacional, social, infra-estrutural e produtivo.
A diferença, quase que abissal, é benefício líquido das novas gerações
obtido na base do esforço e investimento das gerações que hoje estão na reforma
ou próximo dela. As novas gerações, por mais que venham a cumprir o pacto
social intergeracional em vigor até recentemente, nunca chegarão a fechar o seu
saldo devedor para com as velhas gerações.
E é perfeitamente
natural e justificado que assim seja no contexto das vicissitudes a que o nosso
desenvolvimento foi longamente submetido. O que não é natural, e muito
menos admissível, é que se faça tábua rasa desse enorme contributo das velhas
gerações para o bem-estar e o nível de vida das novas gerações, no presente e
no futuro. Nomeadamente, é completamente falsa e aberrante a afirmação de que
as velhas gerações em pouco ou nada contribuíram ou contribuirão para o
rendimento das novas gerações. Esta matéria é de fácil comprovação. Mas não
sendo este o espaço apropriado para a fazer, basta ter em conta, a título
ilustrativo, o importantíssimo impacto incremental das superiores qualificações
educacionais e competências investidas nas novas gerações, quer à custa dos
esforços e sacrifícios diretos das velhas gerações, quer indiretamente mediante
as transformações socioeconomicas e ocupacionais por elas agenciadas.
Em quarto lugar, as
projeções de longo prazo publicadas pela Comissão Europeia demonstram que,
salvo ocorrência de cataclismo europeu prolongado por décadas, os rendimentos
médios das novas gerações disponíveis para utilização em benefício próprio
excederão em muito os quantitativos médios correspondentes usufruídos
pelas velhas gerações, no cômputo geral de todo um percurso de vida ativa. A
margem de progressão da nossa produtividade é de tal maneira grande que a
melhoria significativa do nível de vida das novas gerações só poderá ficar em
dúvida se elas próprias forem excepcionalmente negligentes ou incapazes de
fazer bom uso das competências nelas investidas pelas velhas gerações. Os
ganhos adicionais do PIB potencialmente ao alcance do melhor uso das
competências herdadas são enormes, quanto mais se essas competências
forem devidamente actualizadas e reorientadas para relançar com mais força a
aquisição e uso de novas e superiores competências.
Tudo visto, os velhos
hoje impiedosamente fustigados pelo Governo de Passos Coelho colocaram os seus
deveres de solidariedade e equidade muito acima da simples reciprocidade. E
confiaram na justiça que lhes é devida. Não são sanguessugas predadoras do
bem-estar das novas gerações. Bem pelo contrário, fizeram da grande maioria dos
indivíduos das novas gerações grandes beneficiários líquidos do seu legado.
Nestas circunstâncias, é moralmente abjeto e
factualmente doloso que se promova a guerra contra os velhos em nome da
pretensa justiça e equidade entre as gerações.
Jornal PÚBLICO
Jornal PÚBLICO
Sem comentários:
Enviar um comentário