Mariana
Madrinha, Jornal i | Jornal Sol
A novela de Tancos continua a ser escrita e o enredo é cada vez
mais surpreendente, ao ponto de agora correrem duas investigações: uma sobre o
desaparecimento das armas, outra sobre o aparecimento das mesmas.
"Quando
tudo indicava que mais nenhuma bizarria poderia nascer adjacente ao caso do
roubo das armas de Tancos, eis que, esta semana, foram detidas oito pessoas -
quatro elementos da Polícia Judiciária Militar (entre os quais o diretor-geral,
o coronel Luís Augusto Vieira), três elementos da GNR de Loulé (incluindo o
comandante Lima Santos) e um civil - desta vez a propósito da recuperação do
material de guerra que apareceu na Chamusca depois de, alegadamente, os
investigadores terem recebido uma chamada anónima a apontar o paradeiro das
armas.
Será ainda ouvido mais um militar: o antigo porta-voz
da PJM, major Vasco Brazão, que volta na próxima terça-feira da República
Centro Africana e que segundo o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, «está
desejoso de prestar declarações perante o juiz e esclarecer o equívoco o mais
rápido possível». «Não houve a prática de nenhuns ilícitos da parte dele e das
pessoas que ele comandou. Há um desfasamento entre instituições, mas nenhuma
atividade criminosa», afirmou o advogado, na quinta-feira, à porta do Tribunal
de Instrução Criminal de Lisboa, onde os detidos foram interrogados.
A detenção dos militares ao abrigo da Operação Húbris
[palavra grega que significa orgulho excessivo ou arrogância] causou
perplexidade no Exército e veio trazer ainda mais ruído a um caso absolutamente
atípico e que já teve de tudo. Foram exonerados e readmitidos comandantes, o
Ministro da Defesa chegou a afirmar que poderia não ter havido roubo, a lista
do material furtado apareceu num jornal espanhol, foi devolvido mais material
do que tinha sido roubado e, pelo caminho, foi ficando patente uma guerra entre
polícias: a PJM e Polícia Judiciária.
Na prática, neste momento, correm duas
investigações sobre o mesmo acontecimento: uma sobre o desaparecimento do
material furtado, outra sobre o aparecimento do mesmo. Para perceber como
chegámos até aqui, o SOL deixa-lhe uma cronologia com os momentos-chave deste
caso inédito.
2017: 28 de junho
A falta do material dos Paióis Nacionais de Tancos foi
detectada a uma quarta-feira, dia 28 de junho do ano passado. Os militares que
faziam a ronda depararam-se com as fechaduras de dois paiolins arrombadas.
Segundo o relatório elaborado pelo Ministério da Defesa entregue em março deste
ano no Parlamento, «o acontecimento é reportado à unidade geradora da força,
tendo também dado informação ao Escalão Superior e contactada a Polícia
Judiciária Militar». No dia seguinte, a 29 de junho, o Chefe do Estado-Maior do
Exército (CEME), Rovisco Duarte, envia um comunicado às redações a dar conta do
sucedido. «O Exército informa que foi detectada ontem ao final do dia a violação
dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos, à qual se associa o
arrombamento de dois paiolins. Verificou-se o desaparecimento de material de
guerra, especificamente granadas de mão ofensivas e munições de calibre 9
milímetros», explicava a nota, que dava ainda conta de que PJM tinha tomado
conta da ocorrência e iniciado as averiguações, «tendo tendo já sido informado
o Ministério Público e a Polícia Judiciária». «Não vamos deixar nada por
levantar», assegurou o Ministro da Defesa nesse dia, a partir de Bruxelas,
naquela que foi a sua primeira intervenção relativa a este assunto.
1 de julho
O CEME anuncia a exoneração de cinco comandantes «com
responsabilidade na segurança física» nos Paióis Nacionais de Tancos: Unidade
de Apoio da Brigada de Reação Rápida, Regimento de Paraquedistas, Regimento de
Infantaria nº 15, Regimento de Engenharia nº 1 e Unidade de Apoio Geral de
Material do Exército. Rovisco Duarte sublinhou que a exoneração não estava
relacionada com o desaparecimento do material e que tinha tomado esta decisão
unicamente para se «criarem todas as garantias de que as averiguações em curso
decorrerão de forma absolutamente isenta e transparente». Ainda neste dia,
Pedro Passos Coelho demonstra-se surpreendido por não ter havido demissões na
hierarquia militar - no dia anterior, a 30 de junho, os sociais-democratas e o
CDS já tinham requerido a presença de Azeredo Lopes no Parlamento e o PCP
exigira a retirada de conclusões de um caso que classificou como sendo de
«extrema gravidade». Nesta altura, já a situação estava a ser acompanhada a par
e passo pela NATO e a principal preocupação das autoridades era que o material
caísse nas mãos de organizações criminosas internacionais ou de grupos
terroristas.
2 de julho
O jornal El Español publica, na madrugada deste dia,
uma lista alegadamente completa do material roubado - informação que o Governo
português tinha segurado. De acordo com o documento, que até especifica
quantidades, foram subtraídos, entre outros, 44 granadas foguete antitanque,
264 unidades de explosivo plástico PE4A - que têm um elevadíssimo potencial de
destruição -, além de 1450 cartuchos de 9 mm e 90 granadas de mão ofensivas.
Nessa noite, Rovisco Duarte dá uma entrevista à SIC onde revela que, dada a
eficácia do roubo - os assaltantes «escolheram a dedo» os paiolins - teria
havido «informação do interior». No dia seguinte, a 3 de julho, Assunção
Cristas pede a demissão de Azeredo Lopes. No dia 4, Marcelo, juntamente com o
ministro da Defesa, visita os Paióis e exige o apuramento «de alto a baixo, até
ao fim, doa a quem doer». Nesse mesmo dia, a Procuradoria-Geral da República
emite um comunicado sobre o caso, esclarecendo que o Ministério Público tinha
iniciado «desde logo as investigações». O caso passou a ser investigado pelo
Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), coadjuvado pela PJ e
pela PJM. Segundo o MP, em cima da mesa estavam suspeitas da prática dos crimes
de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo.
6 de julho
Rovisco Duarte é ouvido pela Comissão Parlamentar de
Defesa Nacional, que se realizou à porta fechada, onde terá admitido que podem
ter existido falhas de supervisão. No dia seguinte, o ministro é ouvido na
mesma Comissão. Azeredo Lopes defende Rovisco Duarte e afirma que as falhas da
segurança não se podem relacionar com qualquer desinvestimento no setor da
Defesa. Apesar da confiança do ministro no CEME, começa a derrocada: a 8 de
julho, o tenente-general Antunes Calçada, comandante do Pessoal, demite-se por
«divergências inultrapassáveis» com Rovisco Duarte, noticia o Expresso. Ainda
nesse dia, o general Faria Menezes, comandante operacional das Forças
Terrestres, anunciou que iria sair pelas mesmas razões. «Com a exoneração dos
cinco comandantes houve uma quebra do vínculo sagrado entre comandantes e
subordinados», justificou.
11 de julho
O chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas,
general Pina Monteiro, depois de uma reunião em São Bento, afirmou aos
jornalistas que «os lança-granadas foguetes que foram roubados não terão
probabilidade de funcionar com eficácia, porque estavam selecionados para serem
abatidos». Nesse mesmo dia, o Ministro da Defesa Nacional, bem como o CEMGFA e
os Chefes dos Ramos das Forças Armadas reúnem-se com o primeiro-ministro,
António Costa. A 25 de julho, Pina Monteiro, perante a comissão parlamentar de
Defesa Nacional, esclareceu que o material não era, afinal, obsoleto e que as
suas palavras se deveram ao facto de alguns materiais terem «características
complexas» e não serem, por isso, «fáceis de usar». «Nunca fiz uma única
referência a todo o material», sublinhou.
17 de julho
O material guardado em Tancos é transferido para
outras instalações militares, desistindo-se assim da ideia de reparar as
vedações. Os cinco comandantes exonerados no início do processo são
readmitidos.
10 de setembro
Logo no início de setembro, Marcelo mostra-se
preocupado com a demora do «apuramento de factos e responsabilidades». A 10 de
setembro, em entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, o ministro da Defesa
admite que «pode não ter havido furto», invocando falta de quaisquer provas.
«No limite, pode não ter havido furto nenhum», porque «não existe prova visual,
nem testemunhal, nem confissão. Por absurdo podemos admitir que o material já
não existisse e que tivesse sido anunciado... e isso não pode acontecer». Uma
semana depois, num debate no Parlamento, o ministro anuncia medidas para
reforçar a segurança dos paióis do Exército, mas recusa-se a responder a
questões sobre «o que se passou em Tancos», alegando que a investigação
criminal ainda estava em curso.
18 de Outubro
Quatro meses depois do assalto, na madrugada de 18 de
outubro, o armamento furtado aparece na Chamusca, a cerca de 20 quilómetros do
local de onde tinha sido subtraído. Durante a madrugada de terça para
quarta-feira, o piquete de serviço PJM, em Lisboa recebeu uma chamada com indicações
da localização do material. No local indicado, perto da ponte que liga a
Chamusca à Golegã, num baldio perto de uma ribeira, a cerca de 20 km de Tancos,
a PJM deparou-se com quase todo o material furtado - apenas faltavam as
munições de 9mm - intacto. A devolução do material afastou uma das maiores
preocupações: a tese de que as armas teriam sido furtadas para serem utilizadas
em ataques terroristas. O material foi levado ainda antes da chegada da Polícia
Judiciária ao local para os paióis de Santa Margarida, também ali perto,
ficando à guarda do Exército, para, segundo informou a PJM em comunicado, «ser
realizada a peritagem para identificação mais detalhada». António Costa
aplaudiu «o trabalho desenvolvido pela Polícia Judiciária Militar (PJM) e pela
Guarda Nacional Republicana (GNR), que permitiu recuperar» o material bélico.
Nos dias seguintes, surgem notícias de que os assaltantes teriam devolvido
material ‘a mais’. Segundo o relatório posteriormente divulgado, tudo não
passou de um lapso: depois de um exercício, um sargento não atualizou a folha
de registo de «quantidade de material», pelo que o Exército desconhecia que
tinha sido furtado. O sargento foi alvo de um processo disciplinar e já cumpriu
uma pena de repreensão.
30 de outubro
Os Paióis de Tancos são oficialmente desativados e o
material é transferido, em duas fases, para Marco do Grilo, o Campo de Tiro de
Alcochete e os Paióis do Campo Militar de Santa Margarida.
2018: 22 de março
É entregue no Parlamento o já citado relatório
elaborado pelo Ministério da Defesa. O Governo divulgou o documento, em que o
ministério revela que, além de sistemas de vigilância, e de a rede de vedação
dos Paióis estarem degradados, «nunca foi cumprido o número de efetivos
originalmente determinado para a segurança da infraestrutura», escreveu a
Sábado.
31 de julho
O general Rovisco Duarte foi ouvido novamente na
Comissão da Defesa, a pedido do CDS. Também a procuradora-geral adjunta Helena
Fazenda, Secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), e a embaixadora
Graça Mora Gomes, Secretária-geral do Sistema de Informações da República
Portuguesa (SGSIRP), foram ouvidas em audições requeridas pelo PS. Segundo
escreveu o Diário de Notícias, só neste dia é que o Parlamento teve
conhecimento de que o material recuperado em outubro só tinha chegado à posse
da PJ em junho deste ano.
25 de setembro
Na manhã da passada terça-feira, 25 de setembro, o
Ministério Público (MP) e a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ,
fizeram buscas na sede da PJM - onde detiveram o diretor de órgão, o coronel
Luís Vieira -, Porto, Algarve, Santarém e ainda noutros pontos da zona de
Lisboa. Ao todo, foram detidas oito pessoas nesta operação: além Luís Vieira,
outros três militares da PJM, três militares da GNR e um civil. A estes oito
arguidos da designada Operação Húbris - que envolveu cinco magistrados do MP e
cerca de cem investigadores da PJ - junta-se mais um suspeito: o antigo
porta-voz da PJM, que, por estar em missão na República Centro Africana, só
será ouvido na próxima quarta-feira. Em causa estão os crimes de de associação
criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos,
tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso
de poder, receptação, detenção de arma proibida e tráfico de armas. Na tese do
MP, que o jornal i explicou esta quarta-feira, a PJM quis «estragar a
investigação em curso, fazendo um acordo com o líder do grupo que roubou o
material de guerra» para que o devolvesse. Os suspeitos foram levados para
Estabelecimento Prisional Militar de Tomar e ouvidos no Tribunal de Instrução
Criminal de Lisboa nos últimos dois dias.
28 de setembro
Ao final
da tarde, foram conhecidas as medidas de coação dos arguidos: o líder do grupo
que terá roubado as armas e o diretor da PJM ficaram em prisão preventiva. Os
restantes seis elementos saíram em liberdade, embora proibidos de exercer
funções."