Sócrates, Lula, Salgado e PTs, Oi?
EVA GASPAR *
egaspar@negocios.pt | 27 Novembro 2014
Não, não vou desvendar a trama. Nem sei se há trama, se trama for um emaranhado pensado, organizado, com padrões que se repetem, como um casaco de tricot. Pode ser um novelo caótico e sem sentido. Podem ser coincidências, porque elas existem. Pode ser assim porque o mundo virou aldeia. Há, no entanto, um fio. E muito se passa por ele.
Em 1998, nasce um fio que vai de Portugal ao Brasil para levar mais longe a internacionalização da então maior
empresa portuguesa. Lançado num novo ciclo de
privatizações, o fio deu muitas voltas, assistiu ao fim do casamento
ibérico na Vivo e ao casamento forçado com a Oi, e emaranhou-se entre PTs: na
Portugal Telecom e no Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva.
Presidente do Brasil entre 2003 e 2011, Lula continua em
2014 a ser perseguido pelo "Mensalão" que persegue a PT que perseguia
fazer bons negócios no Brasil para si e para os seus accionistas, entre os
quais o BES e a Ongoing. Em 2012, o publicitário Marcos Valério – o
mais duramente condenado no caso de compra de votos de políticos com dinheiro
desviado de empresas públicas (e não só) – apresentou uma denúncia. Acusa Lula
de ter negociado, em 2005, com Miguel Horta e Costa, então presidente da PT, o
pagamento de sete milhões de reais (2,6 milhões de euros) para o PT brasileiro. A PT nega. Lula, há nove meses convocado pela
Polícia Federal para depor, ainda não compareceu.
Por esse fio passou, além de Horta e Costa, António Mexia
(ministro das Obras Públicas, entre 2002 e 2004) e Ricardo Salgado, presidente
do falecido BES e accionista de referência da velha PT, todos eles arrolados como testemunhas de defesa de
José Dirceu, o-todo-poderoso chefe da Casa Civil de Lula, que acabou também
condenado no "Mensalão".
Em Outubro de 2013, Lula trouxe esse fio de volta a
Portugal ao escrever o prefácio e apresentar o livro do mestrando José
Sócrates. Na concorrida plateia do Museu da Electricidade, património da EDP
presidida pelo ex-ministro António Mexia, estava Pinto Monteiro, ex-Procurador-geral da República
(PGR) que cumpriu a ordem de destruição das escutas que conservavam conversas
entre o então-primeiro-ministro e Armando Vara, condenado em Setembro no âmbito do
processo Face Oculta.
Aproveitando a estadia em Lisboa, Lula levou esse fio ao
Solar dos Presuntos, onde jantou com o empresário Emílio Odebrecht. Com
Odebrecht, o fio volta ao Brasil, onde a construtura com o seu nome é agora
acusada de receber até 1600% do valor de mercado em obras contratadas pela
Petrobrás.
O novelo da Petrobrás tem sido meticulosamente
desenrolado por um juiz de Curitiba, Sérgio Moro, que há três semanas deteve
para inquérito empresários das grandes construtoras do país. É o caso da Camargo Corrêa cuja holding é dona da Cimpor. De fora ficou a Andrade Gutierrez de Otavio Azevedo, accionista de referência da Oi que neste
Verão obrigou à revisão de alto a baixo das condições da fusão com a PT depois
de se ter dado conta de que os 900 milhões investidos pela empresa nos
Espíritos Santos, entretanto caídos do altar, podem ser tara perdida. Terá sido
também o Dr. Otavio quem forçou Zeinal Bava a dizer "tchau"à Oi (com
uma indemnização simpática, ao que parece).
A linha de investigação do juiz Moro segue as empresas
suspeitas de pagarem "luvas", e tem sido apoiada por um poderoso aliado,
importado dos Estados Unidos. A delação premiada pode parecer um
contra-senso moral – "pior do que o criminoso é o cúmplice que o
denuncia" – mas a possibilidade de a comunidade aliviar a
sentença das sardinhas a troco da promessa de entrega de tubarões tem permitido
à justiça brasileira mergulhar em águas mais profundas.
Sem verdadeira surpresa, as gravações das denúncias dos
dois delatores-chave neste processo, Alberto Yousseff e Paulo
Roberto Costa – se quiser pode ouvi-las no Youtube graças a violações do
segredo de justiça - levam a partidos políticos. Levam, por exemplo, ao actual
tesoureiro do PT, João Vaccari, que tomou o lugar de Delúbio Soares porque este
ficara também literalmente preso na teia do "Mensalão". Antes,
Delúbio estivera envolvido noutra "Máfia de Vampiros", um conluio de farmacêuticas
e figuras ligadas ao Estado brasileiro que vendia derivados de sangue
humano a preços exorbitantes. Nessa trama estava a Octapharma, que, até há pouco, pagaria 12 mil euros por mês
ao seu conselheiro consultivo para a América Latina.
"Nunca me perguntou nada de Justiça. Falámos de
livros, das viagens dele, falou do Lula", disse Pinto Monteiro sobre o almoço com José Sócrates, dois dias antes de o
ex-primeiro-ministro ser detido para interrogatório.
Pouso o meu fio. E constato.
Que há gente no espaço mediático que parece mobilizada em
apenas discutir a forma da detenção de José Sócrates para que não haja tempo
para falar sobre o conteúdo – sobre as razões que a precipitaram.
Que há gente que não perde a oportunidade para se queixar
de que é o "mexilhão" que sempre paga e que no momento em que dois
grandes – colossos – dos negócios e da política são detidos passam apenas a ter
dentes para morder supervisores, polícias e juízes.
Que há gente que argumenta que num Estado de Direito não
se pode aspirar a julgamentos justos quando a rua também julga. Tomado à letra,
isso significaria que só o "mexilhão" anónimo pode ser levado à barra
dos tribunais. Significaria ainda que ser-se "too big" é ter na mão
um salvo-conduto para a impunidade.
Há gente também que, perante suspeitas de crimes graves,
diz temer uma República de Juízes e uma transferência ilegítima do poder
executivo para o judicial e que, há uns meses, aplaudia de pé as decisões do
Tribunal Constitucional que, entre outras, impediram coisas aparentemente tão
exclusivas de governos como tributar rendimentos provenientes de subsídios de
desemprego a partir do momento em que estes superam o equivalente ao salário
mínimo recebido e devidamente tributado por quem está no activo.
Muita desta gente fala em mesas redondas em televisões
que mandaram operadores de câmara para o aeroporto. Parecem salas de chuto onde
se deplora a qualidade da droga.
E depois há Daniel Proença de Carvalho. O advogado de
Ricardo Salgado e de José Sócrates (não o é neste caso porque o seu habitual cliente não lhe pediu, mas estará por dentro
porque um dos seus representa o motorista do ex-primeiro-ministro), membro de órgãos sociais de mais empresas do que dá
para contar com dedos de mãos e pés, receia que, com tantos e complexos
processos, o juiz Carlos Alexandre não consiga dar conta do recado e se
contente em ser o "herói dos tablóides".
Daniel Proença de Carvalho acha também que a decisão
de prisão preventiva não faz sentido, designadamente porque "o perigo de
fuga parece ridículo". E porquê? "É evidente que o engenheiro José
Sócrates, se não quisesse comparecer perante as autoridades, não teria feito a
viagem de Paris para Lisboa naquele dia, e porventura teria feito para outro
país qualquer", disse na TSF, rádio do universo Controlinveste a que preside. Mas, afinal doutor, quem teve primeiro
acesso às fugas do segrego de justiça? Os jornalistas ou o
ex-primeiro-ministro?
Talvez a democracia portuguesa nunca tenha estado tão
viva. Não falta contraditório. Sobra contradição.
*Eva Gaspar é jornalista do Negócios desde 2003, sendo
actualmente Redactora Principal. Licenciada em Economia pelo ISEG, começou a
sua carreira no Diário Económico. Entre 1994 e 2002 foi correspondente do
jornal de economia em Bruxelas
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